Um Azar do Kralj

15 minutos de infâmia (Um Azar do Kralj conta a história do sr. Torres, que tem tudo a ver com Neymar)

15 minutos de infâmia (Um Azar do Kralj conta a história do sr. Torres, que tem tudo a ver com Neymar)
SAEED KHAN

A história do sr. Torres tem tudo a ver com o Mundial 2018, mais especificamente com o que anda a fazer Neymar na prova. Vasco Mendonça explica porquê

Vasco Mendonça, Um Azar do Kralj

Não era todos os dias que acontecia uma tragédia em Linda-a-Velha, mas o Sr. Torres, florista oficial da Av. Dom Pedro V, nasceu preparado. No mesmo espaço comercial, preparava os mais diversos arranjos florais, comentava a actualidade desportiva, fumava o seu SG Gigante, cumprimentava apenas os vizinhos que achasse merecedores do gesto e, segundo algumas crianças de etnia africana de quem me viria a tornar amigo e protegido sempre que passava junto à Pedreira dos Húngaros, mantinha uma caçadeira no interior do estabelecimento comercial que usava para perseguir quem lhe atiçasse um dos dois rafeiros que residia na loja ou tocasse nas gerberas. Era uma referência. Se uns anos depois me tivessem dado a oportunidade de escrever Big Lebowski, a frase teria dito “Nobody fucks with the florist” ou “Ninguém faz farinha com o Torres”.

Foi uma das pessoas mais assertivas que eu conheci aos onze anos de idade. Pareceu-me ter nascido preparado quando, no dia da tragédia no meu prédio, se apresentou ao aglomerado de vizinhos, observadores imparciais e demais necrófilos, como a única pessoa com um pente à mão breves segundos antes de ser entrevistado pela televisão. Desde esse dia que o tradicional pente de bolso masculino permanece uma invenção do Sr. Torres. Não digo o objecto em si, mas sim aquele misto de lucidez e sentido de oportunidade que o fizeram sacar o pente do bolso de trás de umas calças Uniform e pedir à jornalista da TVI e, sem que soubéssemos, a todos os portugueses, que aguardassem um instante pelo direto do telejornal, para que só então o florista da rua pudesse explicar, à imagem de qualquer português entrevistado por um jornalista da TVI, aquilo que efectivamente não viu.

Talvez por não ter visto nada nem saber de nada, o sr. Torres me tenha desapontado. Só alguns anos mais tarde compreendi e repudiei, ou ri, sinceramente não me recordo, da gana com que ele furou a multidão e se colocou junto à jornalista, pronto para prestar declarações que terminariam sem uma frase completa, paralisados pela gaguez de quem desconhecia que parecia mais gordo, baixo e burro do que era realmente, quando à frente de uma câmara de tv. Não há coisa mais embaraçosa do que o sensacionalismo com impedimento de fala, razão pela qual o directo foi interrompido abruptamente.

No meu mundo inocentemente vivido, o Sr. Torres parecia preparado, mas os quinze segundos de fama revelaram-se uma desilusão. Pior que isso, passados mais de vinte anos, são esses quinze segundos que eu guardo de um homem simples especializado em arranjos florais. Sei que é uma avaliação injusta da vida inteira de um homem, mas é a isto que as pessoas se prestam quando se mostram prontas para o seu close up. É por isso que Neymar corre agora contra o tempo, neste caso o tempo passado no chão. Segundo uma notícia de hoje, o astro brasileiro leva cerca de catorze minutos deitado no chão. E só vamos nos oitavos de final.

Para efeitos de perspectiva histórica e simbólica, relembre-se que a final da Liga dos Campeões de 1999 foi ganha pelo Man United com 2 golos em 3 minutos no período de descontos. Se perguntarem a Solskjaer, ele dirá que viveu para aqueles 3 minutos. Se perguntarem a Neymar, ele talvez se atire para o chão com a deslocação de ar provocada pelas nossas palavras.

Neymar e a equipa brasileira reúnem condições privilegiadas para viverem o maior momento das suas carreiras, e aquele que os imortalizará junto dos brasileiros e na história do futebol. A equipa brasileira apresenta-se mentalmente preparada e repleta de talento. Já Neymar parece apostado em ser uma recordação algo patética desta competição. Soma dois golos, uma assistência, duas mãos cheias de lances de perigo na área adversária e quarenta e cinco mil memes inspirados pelo seu comportamento infantil quando perde a bola ou sofre o mais ligeiro toque. Num momento crucial, sacou do seu pente de bolso e, sem qualquer hesitação, avançou para os seus quinze minutos de infâmia. Jamais perceberemos porquê, e dificilmente esqueceremos o que vimos.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt