Tanto quiseram dar a liderança a O’Connor que se esqueceram de perseguir O’Connor. Resultado? O’Connor lidera a Vuelta com 4,51’ de vantagem
Tim de Waele/Getty
Dar tanta margem a um homem que já foi 4.º no Giro e no Tour não parece boa ideia. Entre a audácia e talento do australiano da Decathlon AG2R, protagonista de uma fuga épica, e a inércia do pelotão, que se foi entre-olhando, cozinhou-se uma inesperada situação na Vuelta: O’Connor venceu a 6.ª etapa, ganhando 6,47 minutos de vantagem para os favoritos. João Almeida é 3.º classificado da geral
Entre o calor e a muita montanha que falta por disputar numa Vuelta que ainda nem chegou ao seu terço inicial, a 6.ª etapa da corrida espanhola apresentava-se como uma das clássicas jornadas de transição. Um dia para fuga, uma tirada de alguma calma entre os homens da geral, um cenário que até parecia convidar a Red Bull, detentora da liderança com Primoz Roglic, a aceitar ceder de bom grado esse 1.º lugar da geral, passando, por alguns dias, as responsabilidades da camisola vermelha para os ombros de outras equipas.
O guião, no ondulado percurso entre Jérez de la Frontera e Yunquera, começou por ser cumprido. Fuga na frente, tranquilidade no pelotão atrás.
Fuga cada vez com mais minutos na frente. Tranquilidade a mais no pelotão. Deixar andar, deixar ir. Mais minutos na frente, se calhar a tranquilidade atrás era mesmo excessiva.
Talvez tenham deixado muita margem para quem já demonstrou ser um corredor de muito bom nível. Tão focados em cederem a liderança, deixaram-na para quem pode ser, tendo obtido tamanha vantagem, um adversário difícil de lá tirar.
Ben O'Connor já venceu etapas no Giro e no Tour. Foi 4.º na corrida italiana este ano e 4.º na competição francesa em 2021. Mas deixaram-no ir. E ele aceitou a liberdade para ir na fuga.
Não se pense que foi só a passividade do pelotão a pesar. O australiano da Decatlhon AG2R revelou audácia para atacar perante o calor, coragem para ir em solitário e pernas, muitas pernas, pernas daquelas com que os corredores sonham ter num dia em que tudo sai bem. Teve autorização para voar, mas voou, que não haja dúvidas disso.
Quando aterrou, venceu a etapa com 6,31 de vantagem para o grupo onde seguiam os favoritos à geral. Somando as bonificações, ganhou 6,47 minutos a Roglic, João Almeida e companhia.
Como Roglic queria, a camisola vermelha já não é dele. Como Roglic não queria, a camisola vermelha é de Ben O'Connor com 4,51 minutos de vantagem para o esloveno. João Almeida é 3.º, a 4,59' do australiano.
Depois do original — chamemos-lhe original, à falta de melhor adjetivo — começo de etapa num hipermercado, partida que se deveu a motivos publicitários, os primeiros quilómetros foram de várias tentativas de fugas, escapadas que antecederam a que viria a vingar. Aquela que tinha Ben O'Connor.
Quando o grupo superou os cinco minutos de vantagem, os alarmes começaram a soar. A UAE-Emirates começou a reagir, Roglic falava pela rádio com o carro da Red Bull. No entanto, eram perseguições muito a olhar para o lado, mais não querendo gastar mais energias do que o adversário do que propriamente querendo perseguir O'Connor.
O'Connor, esse, nunca parou. Fez daqueles ataques de seguir sem olhar para trás, andando quilómetros e quilómetros em solitário. No pelotão, a perseguição era tímida e a margem foi avançando, terminando quase em sete minutos.
Com esta tirada, as bases em que se correrá o resto da Vuelta ficam profundamente alteradas. Ter um homem com a qualidade do australiano com quase uma mão-cheia de minutos de vantagem tornará as próximas etapas numa perseguição a O'Connor, tentando aferir a dimensão do erro que foi causado.
A 7.ª liga Archidona a Córdoba, de 180,5 quilómetros sem grandes dificuldades de montanha, a qual regressará em força no fim de semana.