Diz-se que a Nike ofereceu mais €100 milhões à federação alemã do que a Adidas. Será que vai usar o dinheiro fresco para apoiar o futebol?
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Philipp Lahm jogou 113 vezes pela Alemanha e 20 anos pelo Bayern de Munique. Foi campeão mundial com as três riscas da Adidas na camisola da seleção e capitaneou o Bayern, clube do qual a marca é acionista. E a Adidas também foi a sua fornecedora de chuteiras.
A parceria entre a Adidas e o futebol alemão foi durante décadas um sucesso comercial e desportivo para ambas as partes. É uma história compartilhada de melhoramento. Em 1954, o país reconheceu-se na seleção nacional, e também na Adidas. Naquela época, era Adi Dassler o gestor de equipamentos, os seus pitons aparafusados foram inovadores e proporcionaram um bom e firme apoio a Fritz Walter, Max Morlock e Helmut Rahn sob a chuva de Berna.
Mais tarde, Dassler construiu uma empresa de classe mundial. Hoje em dia, clubes como o Arsenal e o Ajax de Amesterdão fixam regularmente residência numa pequena vila que nem sequer tem uma estação ferroviária. A seleção nacional também irá preparar-se para o Campeonato Europeu em Herzogenaurach. Dassler – eis a versão alemã da ascensão social desde a pobreza à riqueza.
E a vitória por 3-2 sobre a Hungria na final de 1954 foi um dos primeiros passos na reconstrução da Alemanha após a guerra. Desde então, seguiram-se mais três títulos do Campeonato do Mundo. Quem se recorda de 1974, 1990 e 2014 não deixará de se lembrar das camisas e das bolas da Adidas.
Eles pensaram que essa história de sucesso jamais teria fim. Mas agora, ao fim de mais de setenta anos, a DFB (Federação de Futebol da Alemanha) está a separar-se da Adidas. Compreendo o alarido que se criou sobre isto na Alemanha, não se trata de populismo. Para qualquer adepto de futebol alemão que tenha mais de 30 anos, a DFB e a Adidas são uma entidade única. É fácil imaginar-se que tudo teria continuado a correr maravilhosamente bem com os dois.
A Adidas equipa a seleção alemã desde pouco antes do Mundial de 1954, o primeiro dos quatro que conquistou.
Sinto o mesmo. Joguei 113 vezes pela Alemanha e vinte anos pelo Bayern de Munique. Fui campeão mundial com as três riscas, no Bayern fui capitão de um clube do qual a Adidas é acionista. A Adidas foi a minha fornecedora, obtivemos sucesso juntos.
Quando eu estava no ativo, era o representante de uma gama de produtos a que a Adidas chamara “Pure”. Ou seja: o puro, o original. Essas chuteiras de couro eram destinadas a tradicionalistas como eu. Inicialmente eram pretas, as que lhes sucederam eram verdes, brancas ou azuis. Eu não me importava com a cor, não era uma pessoa complicada. As “Pure” foram as sucessoras das “Copa Mundial”, o clássico da Adidas que alguns jogadores de futebol ainda hoje usam.
Há vinte anos que a grande maioria das chuteiras de futebol deixaram de ser feitas em couro, mas sim em materiais sintéticos. As cores e as formas delas mudam frequentemente. E são comercializadas com estrelas do desporto. Em cada país, cada empresa tem o seu representante. Sem exceção, são atacantes. Essa obsessão em marcar golos não é propriamente o objetivo do futebol enquanto desporto coletivo. Mas esta forma de individualização é a melhor forma de se optimizar os lucros e alcançar as maiores economias de escala.
É vendida uma imagem. As chuteiras custam 200 euros ou mais, e os custos de produção estão estimados em cinco, no máximo dez por cento desse preço. As margens de lucro das camisolas são igualmente fantásticas, e estas são ainda mais baratas de produzir.
A rápida comercialização do futebol está a ter impacto, especialmente nos jogadores mais jovens. As crianças cobiçam esses produtos. Hoje, ao contrário do que sucedia na minha época, quase todas as meninas e meninos com idades entre os 5 e os 12 anos comparecem nos treinos com algum tipo de camisola de futebol. Há milhões de Mbappés, Ronaldos, Messis e Haalands a jogar futebol na vila.
Durante muito tempo, a Nike e a Adidas travaram um duelo neste mercado global; há uma década, ainda se encontravam lado a lado. Desde então a Nike ultrapassou a Adidas e as vendas são agora mais do dobro. Concentrarmo-nos em depoimentos individuais pode às vezes correr mal, como mostra o caso de Kanye West. Essa vantagem permite que a Nike continue a atacar em grande escala. Há rumores de que a Nike propôs à DFB pelo menos 100 milhões de euros, o que é mais do dobro da Adidas.
As camisolas que a seleção da Alemanha vai usar no Euro 2024
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Ainda há muito dinheiro em circulação no futebol, ele está instantaneamente disponível em qualquer lugar através dos dispositivos móveis e pode ser usado para excelente publicidade. Agora, pela primeira vez nesta escala, quem está a beneficiar é uma organização sem fins lucrativos, a DFB. A missão dela está definida nos seus estatutos: representa os interesses dos cerca de 24 mil clubes e mais de sete milhões de associados.
Portanto, se a DFB usar esse dinheiro fresco para apoiar os clubes amadores, o futebol infantil, a formação de árbitros e o futebol feminino, então a decisão a favor da Nike seria boa. Isso criaria uma economia circular. Afinal, tudo é financiado principalmente pelos adeptos que compram os produtos. A tarefa é agora canalizar todo o dinheiro de volta para o lugar de onde ele vem: as bases.
Os jogadores da selecção e o seleccionador nacional também devem interiorizar esta missão da sua federação. O salário dele não deveria ser aumentado mais. Ele não é funcionário do Man City, mas de uma organização sem fins lucrativos que serve o público em geral e tem agora a oportunidade de fortalecer a sociedade civil.
Sendo capitão do Campeonato do Mundo e “Ehrenspielführer” (capitão de honra alemão), as portas da Adidas ainda hoje estão abertas para mim. Quando lhes telefono, é-me entregue gratuitamente o modelo mais recente. Estou muito grato por isso, mas tenho de perguntar a mim mesmo se mereci tal privilégio.
E depois há outras questões, as quais dizem respeito ao meu filho. Ele tem onze anos e joga futebol. Conhece os preços de camisolas e das chuteiras. Não conhece todos os antecedentes. Quando deverei explicar-lhos? Como lhe posso ensinar quais os valores puros, originais, que são realmente importantes no desporto?
*texto redigido em colaboração com Oliver Fritsch, do jornal Zeit Online.