UEFA Euro 2024

Muito tempo depois do começo do projeto Xavi Simons, o futebol está a fazer desaparecer o projeto Xavi Simons

Muito tempo depois do começo do projeto Xavi Simons, o futebol está a fazer desaparecer o projeto Xavi Simons
ANP

Fenómeno nas redes sociais desde que começou a adolescência, o médio poliglota participava em campanhas de publicidade ao lado de Neymar e Ronaldinho com 15 anos e trocou o Barcelona pelo PSG aos 16, ficando com um salário de um milhão de euros por época. É o rei das assistências do Europeu e um dos destaques dos Países Baixos que lutarão por um lugar na final contra Inglaterra (20h, SIC)

Muito tempo depois do começo do projeto Xavi Simons, o futebol está a fazer desaparecer o projeto Xavi Simons

Pedro Barata

Jornalista

Olhando em retrospectiva, ele marca um antes e um depois. Não que tivesse começado com ele, mas a coisa não era assim. Era diferente. Talvez ele não tenha sido o primeiro a pisar aquela terra, o primeiro explorador a atracar naquela costa desconhecida, mas foi ele quem ajudou a moldar o novo mundo.

Xavi Simons não foi o primeiro jogador a utilizar as redes sociais. Mas foi a primeira jovem promessa a explodir com elas. Na verdade, Xavi Simons foi o grande pioneiro numa das maiores revoluções do star system: não se tornou conhecido nas redes sociais por ser famoso, tornou-se famoso por ser conhecido nas redes sociais.

Xavi Simons, o menino que ainda ninguém vira jogar futebol com adultos mas já era mais seguido do que muitos futebolistas adultos. Quando ainda estávamos a perceber o que era o mundo viral, quando o Papa acabara de aderir ao Twitter, já ele marcava a tendência. Mostrava o caminho. Apontava para o futuro, qual menino vindo de outro tempo para mostrar o que aí vinha.

Vejamos o mapa da descoberta: aos 13 anos, em 2016, Xavi Simons, um menino recém-entrado na adolescência que jogava na formação do Barcelona, já era uma estrela das redes sociais. Tinha publicações escritas em diversos idiomas (catalão, espanhol, inglês), exibia patrocínios de multinacionais, partilhava vídeos profissionalmente editados e fotografias meticulosamente tiradas.

Ali estava um rapaz de cabelo esvoaçante, de imagem profundamente reconhecível, com uma comunicação mais cuidada do que muitas estrelas da bola. Ninguém o conhecia como futebolista, ele nem era ainda um futebolista, mas parecia um conglomerado de empresas num corpo de menino. Uma marca registada em cima de uma cara que ainda nem começara a mostrar borbulhas.

Ver Instagram

A experiência inédita, o projeto Xavi Simons, foi prosseguindo a ritmo acelerado. Mostrava as férias que passava em sítios paradisíacos, qual estrela consolidada, escrevia mensagens motivacionais em diversos idiomas. Fazia vídeos com conhecidos influencers.

Aos 14 anos superou o milhão de seguidores no Instagram. Aos 15 participou num anúncio da Nike ao lado de Ronaldinho, Neymar, De Bruyne, Coutinho ou Pirlo. Aos 16 já se passeava pela zona VIP do Grande Prémio de Barcelona de Fórmula 1, fazendo-o não com a admiração e espanto de um adolescente, mas com o sentido de estrelato de um craque veterano.

O conteúdo viral fluía, expandia-se, crescia. Mas aquela jovem promessa do futebol que se tornou famosa não por jogar futebol, mas por ser conhecida nas redes sociais, não deixava de ser uma jovem promessa do futebol. E é o futebol que, muito tempo depois do começo do projeto Xavi Simons, está a fazer desaparecer o projeto Xavi Simons.

Adeus, fenómeno das redes sociais. Olá, futebolista de elite.

Barcelona, Paris, Raiola, €1 milhão

Claro que Xavi Quentin Shay Simons, o menino neerlandês que se destacava na formação do Barcelona, foi parar às mãos de Mino Raiola, o agente que mais seduzia este tipo de talento. “Ele era como um pai para mim”, disse Simons sobre o empresário que faleceu em abril de 2022. Mas, antes disso, Raiola teve tempo de ajudar a escrever o percurso do rapaz do Instagram que queria ser estrela do mundo real.

Xavi Simons, jogando pelo Barcelona aos 8 anos
Jasper Juinen/Getty

Natural de Amesterdão, o neerlandês foi cedo viver para Espanha, começando a jogar no Barcelona aos sete anos. Chama-se Xavi pela devoção do pai — antigo futebolista de emblemas como o NAC Breda, o Fortuna Sittard, o Willem II ou o Ado Den Haag — por Xavi Hernández. O seu irmão chama-se Faustino pelo gosto do pai por Asprilla, o craque colombiano.

O tecnicista das redes sociais, o adolescente das fotografias do Instagram com mensagens motivacionais e dos vídeos do YouTube a fazer truques, foi dando nas vistas em La Masía. Quem viu aquele Xavi de 14 ou 15 anos, o Xavi que todos conheciam das redes sociais mas ninguém vira, de facto, jogar futebol, destaca-lhe a criatividade, o espírito de liderança, a ambição.

A ambição. Antes de completar 16 anos, Mino Raiola sentou-se em seu nome com a direção do Barcelona para negociar um contrato. As exigências foram descritas como “absurdas” pela direção culé. Então, no verão seguinte, Simons assinou pelo PSG. Foi receber um milhão de euros por temporada.

O desconhecido mais famoso do mundo

O projeto Xavi Simons ia seguindo. Conteúdos, viralidade, likes, partilhas. No campo desportivo, a incógnita mantinha-se.

Escolhendo jovens fenómenos deste Europeu — vamos ignorar Lamine Yamal ou Kylian Mbappé, fenómenos de fazer inveja aos fenómenos —, Pedri tinha 56 jogos pelo Barcelona e 10 internacionalizações por Espanha quando fez 19 anos, Saka somava 43 encontros pelo Arsenal e estrear-se-ia semanas depois por Inglaterra quando chegou aos 19, idade em que Camavinga disputara 87 desafios pelo Rennes, 17 pelo Real Madrid e três por França.

Quando fez 19 anos, a 21 de abril de 2022, Xavi Simons tinha disputado 331 minutos pela equipa principal do PSG. Só fora titular uma vez na Ligue 1, não participaria na Liga dos Campeões até ano e meio depois.

Simons cresceu com uma atenção mediática fora do normal
Tullio Puglia - UEFA/Getty

Xavi Simons, o príncipe pioneiro do mundo virtual, o rei da internet desde que entrara na adolescência, preparava-se para sair da adolescência quase como uma incógnita futebolística. Muitos likes, poucos minutos. Num certo sentido, era o desconhecido mais famoso do mundo do futebol.

Sem grande alarido, o PSG deixou-o ir, a custo zero, para o PSV. Colocou apenas uma opção de recompra no negócio. Em Eindhoven, o impacto desportivo começou a ser real.

Em 2022/23, Xavi Simons passa a fazer a diferença no relvado. Entra naquela época sem nunca ter disputado competições europeias e só com um encontro de início num campeonato. De lá saiu com a Eredivisie vencida, 48 jogos realizados, 22 golos, 11 assistências. A estreia na seleção, a convocatória para o Mundial do Catar.

O sonho do Europeu

Pela explosão em Eindhoven, o PSG ativou a opção de recompra. Cedeu-o ao RB Leipzig. Claro que aquele fenómeno comercial adolescente ia entrar na rede Red Bull.

Mas a aposta não é só comercial. Xavi Simons, já descoberto como futebolista depois do fim do super conhecido anonimato desportivo, é um jogador agressivo, talentoso, um médio que cria, mas pressiona, que dribla, mas fá-lo com verticalidade. Um futebolista Red Bull.

“Ele é o protótipo do que queremos para o nosso jogo. Adora pressionar e roubar bolas, emana energia e é extremamente dotado tecnicamente”, opinou Marco Rose, técnico do Leipzig.

Simons marcou 10 golos e fez 13 assistências em 2023/24. Foi, segundo os dados da empresa especializada Driblab, o oitavo jogador da Bundesliga com mais oportunidades criadas por cada 90 minutos (2,58 em média) e o oitavo com mais dribles realizados por 90 minutos (média de 2,48).

No Euro 2024, Xavi está a continuar a brilhar. É, a par de Lamine Yamal, o rei das assistências da competição, com três. Criou 11 oportunidades de bola corrida, o segundo melhor registo do torneio.

Frente à Roménia, quando fez duas assistências, Ronald Koeman, selecionador neerlandês, disse que Xavi “foi tremendo”, destacando-o como “o melhor da equipa”. Virgil van Dijk, o capitão, descreve-o como “um talento brutal”, que tem “muitíssimo a dar” à seleção. Diz-se que o Bayern o pretende como reforço para 2024/24.

O poliglota — fala fluentemente neerlandês, espanhol, catalão, inglês e francês e está a aprender alemão — será uma das principais armas dos Países Baixos contra Inglaterra (20h, SIC). Será um encontro com um futebol que o poderia ter acolhido, já que o Chelsea o tentou contratar aos 12 anos. Claro que o Chelsea, a casa que acena com milhões a tantos talentos precoces, o tentou contratar.

Boris Streubel - UEFA/Getty

Dentro da precocidade da exposição nas redes sociais de Xavi Simons, no mundo que ele expandiu e desenvolveu como pioneiro, os últimos meses soam a novidade. Há menos de um ano jamais disputara um encontro na Liga dos Campeões, há menos de um mês jamais fora titular num grande torneio com os Países Baixos.

Eis o paradoxo Xavi Simons: há quase uma década que o conhecemos, que sabemos o nome, que achamos graça ao cabelo, mas há escassos que o vemos na elite, num patamar condizente com o seu mediatismo.

Quando tinha 13 anos e ia a torneios com o Barcelona, crianças ainda mais novas do que ele pediam-lhe fotografias, gritavam “Xavi, Xavi, Xavi, foto, foto, foto”, como contou à BBC o técnico Pau Moral, seu treinador naquela idade. No entanto, só agora enche páginas de jornais internacionais pelo seu talento no campo.

A internet está cheia de referências a Simons quando ele tinha 13 ou 14 anos. Não é difícil encontrar conteúdo sobre Xavi em 2015, por exemplo. Também não é difícil encontrar conteúdo de 2015 sobre Harry Kane, capitão da equipa à qual o neerlandês se enfrentará nestas meias-finais. A diferença é que um nasceu em 1993 e o outro em 2003, que um se estreou pela seleção em março de 2015 e o outro em dezembro de 2022.

Como é óbvio, Xavi Simons não tinha alternativa a ser futebolista. “Se não fosse jogador, o que seria? Não sei, desde criança só penso em ser um dos melhores do mundo. Não tenho plano B, nunca tive plano B”, confessou numa entrevista aos canais de comunicação do RB Leipzig.

Nesta empresa calculada e estudada e cuidada desde a pré-adolescência, nesta ideia de ter o jogador de futebol mais viral do mundo, faltou, até há pouco tempo, a parte do futebol. Está a surgir agora. E em força. Conquistado o Instagram, virá agora a Europa?

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