UEFA Euro 2024

Uma mão será debatida para sempre na Alemanha. Só o árbitro podia decidir, a Inteligência Artificial pouca ajuda lhe traz

Uma mão será debatida para sempre na Alemanha. Só o árbitro podia decidir, a Inteligência Artificial pouca ajuda lhe traz
Alex Pantling - UEFA

Philipp Lahm, diretor do Euro 2024, faz um balanço final do torneio e destaca como o futebol refletiu, uma vez mais, os debates sociais. Porque a Europa anda à procura de um novo significado nos tempos que correm: um pouco menos de autorrealização, mas mais autopreservação. “Trata-se de salvaguardar o nosso elevado padrão de vida e o nosso Estado de direito. Isto também está a modificar o comportamento dos protagonistas do futebol”, explica, acabando por destacar o exemplo de Mbappé

Uma mão será debatida para sempre na Alemanha. Só o árbitro podia decidir, a Inteligência Artificial pouca ajuda lhe traz

Philipp Lahm

Antigo campeão do Mundo de futebol

Não se poderia desejar melhores convidados do que os romenos. Primeiro limparam e arrumaram o seu balneário, depois deixaram lá uma carta:

“Partimos da Alemanha com a sensação de que demos tudo pela Roménia e estamos gratos por tudo o que vivemos aqui. Estamos muito felizes por a Alemanha ter sido o palco. Cada jogo, cada emoção, cada experiência uniu-nos e fez-nos sentir a magia do futebol Foi uma honra fazer parte da grande família do futebol europeu.”

O Euro 2024 da UEFA irá terminar em breve, e por isso está na altura de uma avaliação. Eu não poderia concordar de forma mais veemente com a conclusão alcançada pelos romenos. Antes de regressarem a casa, eles pensaram no motivo de estarem aqui. É exatamente para isso que nós estamos aqui: para nos unirmos, para comemorarmos, para nos desligarmos, para darmos tudo de nós, para estarmos presentes. Nada mais e nada menos.

Os grandes acontecimentos desportivos têm um valor e isso tornou-se evidente nas últimas quatro semanas. As comparações com o “Sommermärchen” (conto de fadas de verão) de 2006 são enganosas. A situação política mudou. Vivemos tempos de crises globais. Não havia iPhone em 2006. Este aparelho transforma cada um dos seus proprietários em remetente e em destinatário, o ciclo da informação tornou-se muito mais curto.

O que liga 2006 a 2024 e o que se aplica sempre é que o ímpeto adveio da participação das pessoas. Todos os 2,7 milhões de bilhetes foram vendidos, centenas de milhares de adeptos viajaram até à Alemanha e um total de seis mil milhões de pessoas terão assistido à prova.

O futebol continua a ser um melting pot, como mostram as imagens dos estádios e das zonas para adeptos. A sociedade discute inevitavelmente todas as suas questões nesta enorme bolha. O futebol atinge diretamente as pessoas de três maneiras.

Em primeiro lugar, existem os acontecimentos desportivos. Assistimos a partidas emocionantes. Os países que não têm as melhores condições conseguiram apresentar-se e afirmar-se porque formaram uma unidade com os seus adeptos. Os romenos sobreviveram a uma fase preliminar pela primeira vez desde os seus melhores momentos com o inconfundível Gheorghe Hagi, há mais de duas décadas.

França, Espanha, Inglaterra e Holanda, todas elas nações que já conquistaram um título, chegaram às semifinais. São lideradas por quatro personalidades que trabalham nas suas respetivas organizações há anos, que tiveram de discutir acaloradamente os pormenores cruciais e de lidar com vitórias e com derrotas. Isso é sustentabilidade social.

As equipas de Didier Deschamps, Ronald Koeman, Luis de la Fuente e Gareth Southgate têm caráter. Com a Espanha, em particular, é possível reconhecer-se uma perspetiva de como a seleção irá jogar nos próximos anos.

Jürgen Fromme - firo sportphoto

Em segundo lugar, existe a familiarização com as regras. Na Alemanha, muitos ainda falam sobre uma possível decisão errada do árbitro. Nos quartos de final, um espanhol bloqueou a bola com a mão. Não houve apito, o VAR não se envolveu. Essa mão será debatida para sempre. Somente um árbitro pode decidir se ela foi intencional ou não. É ele que carrega a responsabilidade, uma Inteligência Artificial pouca ajuda lhe traz.

Pode dizer-se sempre o que é justo? Não, existem diferentes opiniões jurídicas. Se essa decisão contra a Espanha foi má, então o penálti contra a Dinamarca quando a falta ocorreu também foi uma má decisão. Portanto, nunca haverá justiça absoluta no futebol, tal como na política e na vida em geral. Enquanto europeus resilientes, temos de suportar esta situação.

Em terceiro lugar, o futebol reflete os debates sociais. A Europa anda à procura de um novo significado nos tempos que correm: um pouco menos de autorrealização, mas mais autopreservação. Trata-se de salvaguardar o nosso elevado padrão de vida e o nosso Estado de direito. Isto também está a modificar o comportamento dos protagonistas do futebol.

Durante o torneio, Kylian Mbappé pediu por duas vezes aos seus compatriotas que não votassem na extrema-direita. Mostrou coragem cívica e assumiu responsabilidade política. Dificilmente alguma figura pública poderá evitar hoje esta exigência.

Era diferente quando eu estava no ativo. Quando falei a uma revista alemã sobre a situação dos direitos humanos no país anfitrião antes do Campeonato Europeu de 2012, na Ucrânia, fui duramente criticado pelo presidente da UEFA, Michel Platini.

Há muitas coisas que são expressas no popular desporto do futebol. O que acontece na arena e no caminho até lá tem uma função nas nossas sociedades. Parte do desporto consiste em exprimir emoções. Enormes comunidades de todos os vinte e quatro países participantes celebraram as suas equipas de forma exuberante na Alemanha, marchando alegremente e bem aperaltadas pelos centros das cidades. Os romenos jogaram por duas vezes na minha cidade natal, Munique, e a atmosfera era descomunal.

James Gill - Danehouse

O futebol é um escape. As pessoas não são apenas racionais, elas têm muito com que lidar na vida quotidiana. Em que outro sítio há tantos cânticos e gritos? Também houve tons discordantes. Alguns estiveram no limite do tolerável. No caso da saudação nacionalista turca do lobo, por outro lado, os legisladores da UEFA impuseram um castigo.

A escalada torna-se possível, mas ela ocorre de maneira ordenada e regulamentada. O enquadramento jurídico proporciona a todos a oportunidade de se desenvolverem, mas não sem limites. Em tais disputas, nós, na Europa, definimos o nosso terreno comum. O futebol é um meio para um fim.

Como tenho experiência no futebol, considero-me adequado para o cargo de diretor do torneio. Vi-o como um dever agradável do qual desfrutei. Os pioneiros do futebol tinham em vista o entendimento internacional e os direitos humanos. Nada mudou sob esse aspeto, e por isso que me orientei por eles.

É sempre importante definir esses objetivos, tanto em pequena como em grande escala. Os Jogos Olímpicos de Paris são a próxima oportunidade. Cada torneio de futebol infantil no clube da aldeia também tem doravante um novo propósito.

Agora que o meu mandato está a chegar ao fim, depois de seis anos intensos e de quatro semanas muito intensas, muitas coisas se tornaram mais claras para mim. Para nos adaptarmos aos tempos de mudança, precisamos de pessoas credíveis que estejam comprometidas com instituições influentes. Ambas devem vir juntas.

Culpar as instituições, como passou a ser a norma, é demasiado fácil. Procurar culpados e recorrer ao ressentimento é a abordagem errada. O mundo é complexo. A minha colega de campanha Celia Šašić e eu conhecemos pessoas na política, na polícia, nos bombeiros, em clubes de futebol, na DFB (Deutscher Fußball Bund/Federação Alemã de Futebol) e na UEFA que estão comprometidas com uma causa há anos. Isso impressiona-me, todos nós temos de trabalhar nisso agora, é um dever de todos.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt