Ajoelhado, Lukaku mantém-se sempre de pé

Jornalista
Se um dia for preciso olhar para trás e contar como era o futebol no início do século XXI, não esqueçamos o nome dele. Romelu Lukaku, Rom para família e amigos, é nome conhecido de quase todos os que acompanham o Europeu no ano da graça de 2021. Não foi sempre assim.
Houve um tempo em que Rom já era grande, já era forte, já era rápido e já marcava golos, mas ninguém o conhecia pelo nome. Em 2004, tinha ele 11 anos, os pais dos adversários nas escolinhas do Lierse S.K., um clube já extinto, da província belga de Antuérpia, fizeram circular o bilhete de identidade da criança, desconfiando-lhe da idade e da origem. “És de onde?”, ouvia o rapaz que nunca havia estado senão na Bélgica.
Quando falarmos do futebol do início do século XXI, vamos ter de falar de racismo. Não esqueçamos o nome dele.
No passado sábado, Rom, preocupado com um amigo dinamarquês chamado Christian Eriksen, com quem joga em Itália, entrou pela primeira vez em campo no Europeu e dobrou-se com uma mão apoiada sobre um dos joelhos. A outra deixou-a livre para erguer o punho.
Os colegas ajoelharam também, enquanto os adversários, a jogar em casa, na Gazprom Arena, em São Petersburgo, deixaram-se ficar de pé, com o público do lado deles, a vaiar os belgas que aderiam ao movimento “take the knee”, sinónimo de luta antirracista no desporto.
Para contar a história do futebol do início do século, vai ser preciso falar de antirracismo. Não esqueçamos o nome dele, o primeiro a pousar o joelho na relva, o primeiro a fazer ouvidos moucos aos regulamentos da FIFA, aos argumentos de que a política não tem lugar no futebol, como se não houvesse uma coleção de provas de que política e futebol estão sempre a cruzar-se — em 2018, aprendemos isto.
Tinha Romelu apenas três anos quando o pai se estreou a marcar numa competição internacional de seleções. Era 25 de janeiro de 1996 e Roger Lukaku é este rapaz aos 40 segundos de vídeo, a bater o penálti com que a seleção do Zaire, atual Congo, começou a derrotar a Libéria na Taça das Nações Africanas desse ano. O golo foi samba de uma nota só na carreira internacional de Roger pela seleção.
Mesmo assim, nada faria prever que, aos seis anos, Rom descobrisse que a infância seria passada sem televisão para ver futebol, sem água quente para tomar banho, até sem leite para empurrar o pão e completar a refeição do costume. Foi nessa altura que viu a mãe misturar água nesse leite, para o fazer durar, uma das histórias que contou aqui.
O pai Roger tinha acabado de deixar o Mechelen, da primeira divisão belga, clube no qual por pouco não se cruzou com Michel Preud’Homme. O que se seguiu na vida do futebolista nascido em Kinshasa e há muito imigrado na Bélgica foi uma curva sempre em sentido descendente, que acabou em 2007, nas divisões amadoras do país.
Se não é possível falar do futebol do século XXI sem pensar em dinheiro, em muito dinheiro, também não é justo esquecer os milhares que nunca tocam o céu, e os que, tocando, aumentam o tamanho da queda. “O dinheiro tinha acabado”, concluía Rom.
Não esqueçamos os nomes deles.
Aos 28 anos, Romelu Lukaku parece estar no melhor momento da carreira. Há um mês, sagrou-se campeão italiano, algo que no Inter de Milão não acontecia há uma década e que se deve em parte ao possante ponta de lança. Consagrado MVP do campeonato, foi descrito assim pelos responsáveis da Série A: “supremacia atlética, técnica de excelência e mentalidade de líder. Os números são simplesmente fantásticos: 24 golos e 11 assistências!”.
Não que seja raro Lukaku marcar golos e fazer assistências. Começou aos 16 anos na equipa principal do Anderlecht, em 2009, aos 18 voou para Londres, para o fazer no Chelsea, onde nem tudo correu como esperado. Foi emprestado ao West Bromwich, o que foi entendido como despromoção, e depois ao Everton. “Não sei por que é que algumas pessoas no meu próprio país querem que eu fracasse. Sinceramente não sei.”
Nos azuis de Liverpool não fracassou, foi comprado por um preço recorde e, em quatro épocas, tornou-se o segundo melhor marcador de sempre do clube, só superado por um homem (Graeme Sharp) que fez o dobro dos jogos na década de 60.
De cada vez que Rom toca o céu, há qualquer coisa que parece fazê-lo tombar. Vendido ao Manchester United, marcou três golos nos primeiros dois jogos oficiais, nada que convencesse adeptos e comentadores afetos ao clube, até hoje a discutir por que raio Lukaku não resultou em Old Trafford. A cada falhanço, uma capa de jornal, um título em maiúsculas, como este: "Romelu Lukaku atira o pior remate de todos os tempos ANTES da derrota com o Tottenham".
Trata-se de uma jogada no aquecimento, pouco antes de, nos primeiros minutos do jogo, Lukaku fintar o guarda-redes e, descaído sobre a direita, atirar a cruzar a baliza, mas não a linha de golo. José Mourinho estava no banco a levar as mãos à cabeça, Gary Neville, Paul Scholes, jornalistas e comentadores vários, agitavam-se a pedir a cabeça do avançado, que chegou a ser acusado de falta de profissionalismo.
A cabeça rolou um ano depois, em agosto de 2019, quando chegou ao Inter para se tornar o sétimo jogador a marcar mais de 20 golos em duas épocas seguidas pelo clube e a festejar 50 vezes em 70 jogos, batendo o recorde de ninguém menos que Ronaldo Fenómeno.
1,91 metros e 93 quilos de jogador, Lukaku balança, mas não cai. “As pessoas no futebol adoram falar sobre força mental. Bom, eu sou o gajo mais forte que vocês podem conhecer. Porque eu lembro-me de me sentar às escuras com o meu irmão e a minha mãe, a dizer as nossas orações e a pensar, a acreditar, a saber.... Isto vai acontecer.”
Isto está a acontecer. Rom já conquistou o direito que nunca devia ter precisado de reclamar: hoje é “Lukaku, avançado belga”, e não “Lukaku, avançado belga de ascendência congolesa”, que ouvia nos dias maus. Vai caminhando também para outro epíteto, o de melhor ponta de lança de sempre da seleção belga.
Num tempo em que o futebol se moderniza, e se elitiza, em que as academias de futebol infantil tomam o lugar das ruas, é preciso lembrar os que têm no futebol o único elevador social possível. Lukaku é um deles.
Assim como é preciso lembrar que o futebol do início do século XXI abriu as portas aos imigrantes de segunda e terceira geração na Europa, muitos deles filhos dos subúrbios das grandes cidades, como os campeões franceses em 2018, e que por direito próprio ficaram com os papéis principais.
Marcado pelo avô materno, Rom já confessou diversas vezes a tristeza que sente por ele não o estar a ver. Não a ver o título no Inter, a Liga dos Campeões, o terceiro lugar no Mundial de 2018. Não a ver os dois golos à Rússia no arranque deste Europeu, ou os que se seguirão, numa competição em que a Bélgica volta a encantar os enamorados pelo jogo, mas o momento em que Rom se pôs de joelhos.
Rom queria que o avô visse a vida que a família tem hoje, a mãe, o irmão mais novo, Jordan, que joga em Antuérpia. Ver e, sobretudo, ouvir Lukaku dizer: “Vês? Eu disse-te. A tua filha está bem. Acabaram os ratos no apartamento. Acabaram as dormidas no chão. Acabou o stress. Estamos bem agora... Eles já não precisam de ver o meu B.I. Eles sabem o nosso nome.”
A Bélgica joga esta quinta-feira com a Dinamarca, em Copenhaga (17h, Sport TV), a segunda jornada do grupo B.
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