Euro 2020

Um entrou no futebol com uma carta enviada a Bielsa, o outro foi pelo Irão. Conheceram-se há um mês, agora treinam na I divisão da Hungria

Um entrou no futebol com uma carta enviada a Bielsa, o outro foi pelo Irão. Conheceram-se há um mês, agora treinam na I divisão da Hungria
Diogo Pombo
João Janeiro entrou futebol profissional dentro quando "atirou o barro à parede" e enviou uma carta a Marcelo Bielsa com um CD cheio de relatórios de jogo. Foi analista no Athletic Bilbao, também no Abu Dhabi e depois iria para os EUA antes de acabar na Hungria devido a uma surfada com pessoas que conheciam pessoas. E, para seu adjunto, foi buscar Ricardo Pedro, que andou por Irão, Moldávia, Vietname e Angola e a quem vai pagar do próprio salário. Os dois vão treinar o Kisvárda e apenas se conheceram cerca de um mês antes de falarem com a Tribuna Expresso num café de Budapeste

Enquanto se movia com o dever e a função de dar pontapés na bola, a "relevância foi nenhuma", é a vida, não existem senhas que guardem a vez para uma fila distribuidora do jeito. A maluqueira pelo futebol nunca será umbilical ao talento, são coisas de independência declarada e João Janeiro sempre sentiu uma "paixão enorme pelo jogo". Quase todos os amores, contudo, têm problemas de locomoção, precisam de auxílio.

Se o não é garantido então que se resgate a cana para pescar o sim, João "gostava tanto do jogo na altura" que analisava partidas, "fazia muitos relatórios" e editava vídeos, então atirou "o barro à parede". Di-lo como se fosse tão fácil como levantar-se da cadeira, curvar ao largo da mesa da esplanada de Budapeste e ir à janela do café, que dá para a rua, onde pede mais uma chávena para o jornalista que o interroga logo pela manhã.

João volta a sentar-se e retoma a conversa após esta vírgula. No fundo, diz, é fácil, na cabeça de toda a pessoa há encrencas e gavetas que dificultam a mobilidade, só que a dele fê-lo mexer e enviou uma carta a Marcelo Bielsa. "Apresentei-me, era uma página, sou esta pessoa, sou apaixonado por isto e este é o meu trabalho. Na altura, até enviei em CD, nem sequer foi em pen", conta. Na mão tem um cigarro eletrónico, manobra-o enquanto fala sobre o peculiar treinador que é obra no futebol.

Escolheu enviar uma carta ao argentino que vive como um peixe de água doce que foi largado no salgado oceano do futebol: dorme nos centros de estágios dos clubes, é do mais filosófico que há nas conferências de imprensa, conforta-se sempre no uso de um tradutor para não aprender os idiomas e vai à minúcia em tudo. Mas, às tantas, João Janeiro foi "contactado pelo adjunto dele" e "claro que disse que sim". A carta resultou.

O português virou analista de jogo e a primeira experiência no futebol sénior foi a alimentar o detalhismo que Bielsa, "um gajo diferente", exige. "Repara", diz, quando lembra que o argentino "vem de uma família de advogados milionários de Buenos Aires", portanto dispensador de ter no futebol um escape a arrelias financeiras da vida. "A pressão que eu acho que ele tem é a de querer construir alguma coisa. Quer deixar um legado", acrescenta, sobre o tipo que "se lhe apetecer desistir de um projeto, desiste, não lhe faz confusão". Já o fez várias vezes.

Haverá montanha, salada e demais coisas russas que remetem para a misturada para abordar o que irá dentro da cabeça de Bielsa. Quando João acaba com os exemplos para o ilustrar - "ele era folhas e folhas de excel, com informações do jogador A, todos os jogos que fez, quantos em que jogou nesta posição até ao minuto 73, e que variante houve entre o minuto 73 e 74" - opta por resumi-los num "é demasiado minucioso".

O português nem hoje usa este tipo de análise tão magnificada pela lupa, "só faltava saber o número que cada jogador calçava". Está agradecido a Bielsa e faltam-lhe palavras que cheguem ao quão grato ficou, mas julga que o argentino é assim, em parte, por "descargo de consciência" e "para sentir que fez tudo o que estava ao seu alcance para ganhar o jogo".

João ainda foi adjunto de Mitchel Van der Gaag no Belenenses - "fizemos quase 100 pontos, 100 e tal golos, com uma equipa com 23 jogadores novos que vinham das distritais e do Campeonato de Portugal" -, também teve essa função no Estoril, depois andou por escalões juniores, enquanto tirava os cursos da UEFA onde "fez os conhecimentos" que lhe trouxeram um convite para o FC Tulsa, da segunda divisão dos EUA.

Disseram-lhe, "João, isto é para dar espetáculo". Que poderia "levar quatro golos, desde que marcasse cinco" e o português gostou do "nível elevadíssimo" que viu nos americanos. Até se lembra de "estar num estádio, passar um helicóptero e deixar cair dólares, a mandar dinheiro para as bancadas" onde estavam umas 30 mil pessoas.

Haja saudade e haverá algo, contudo, a puxar-nos para longe. Havia a mulher e a filha de 2 anos que estavam a um oceano de distância. E, como antes já tinha havido uma sessão de surf perto de Lisboa, com umas pessoas que conheciam outras pessoas e disseram a João para manterem o contacto, por nunca se saber que pessoas surgem no caminho, o português veio para à Hungria. Por arrasto, a este casual café de Budapeste.

João Janeiro até nem levou "aquilo muito a sério", prestes estava a ir para os EUA, mas teve tempo de ir à Hungria "dar umas palestras sobre coisas técnicas do futebol, periodização tática e etc.". Passados uns meses de vida americana, estava a ter a primeira experiência como treinador principal no Szeged 2011.

Ficou dois anos pela segunda divisão da Hungria e, quando nos encontramos em Budapeste, na manhã seguinte a aterrar no país e no dia da estreia de Portugal no Europeu, João surge à mesa já treinador do Kisvárda, do principal campeonato húngaro. E está sentado com Ricardo Pedro.

A presença do adjunto não fora anunciada, é uma surpresa. Ricardo é magro e barbudo, acumula tempo com as pernas cruzadas e ainda mais com a ausência de palavras, eles até nem se conhecem assim há tanto, embora já o suficiente para João o atrair à conversa pelo uso da brincadeira - "epá, dei-lhe uma mala cheia de dinheiro" e assim o trouxe para aqui.

Quem agora é o principal dos treinadores do Kisvárda estava carente de um "especialista em monitorização de treino". Falou com algumas pessoas, pôs a sua própria cadeia a funcionar e indicaram-lhe quem teve mais relevância como jogador. Não tanta quanto quereria, sempre quis manter-se em Lisboa para não abandonar o curso em Educação Física que tirou - ou "eras um jogador fraco", troça de novo João, polvilhando outra piada para desfazer quaisquer cerimónias.

Falaram por telefone, primeiro. Apenas se conheceriam no início de maio e bastaram dois encontros, cara a cara, para, finalmente, João ter um adjunto português consigo. "Desta vez, não abdiquei", resume, comparando o Kisvárda a um Moreirense de Portugal para explicar a dimensão do clube, que não permite aventuras por aí além. "Aliás, pago do meu salário, sem problema", revela, sobre as artimanhas que houve para trazer Ricardo Pedro para a Hungria.

João não é "nenhum santinho, nem bom samaritano", garante. "Mas tento muito fazer com que não passem o que eu passei, que foram as passas do Algarve para chegar até aqui". E Ricardo logo disse que sim por aventureiro também já ter sido, algumas vezes.

Deixadas as chuteiras em paz, a primeira experiência no futebol profissional foi logo em Sarat Naft, no Irão, a "uns 200 ou 300 metros" da fronteira com o Iraque. "É um cenário de guerra", descreve. Nem um mindinho tem a apontar aos iranianos e à forma como foi tratado durante um ano, enquanto preparador físico na equipa técnica de Carlos Manuel, no lugar "mais fustigado pela Guerra do Golfo", devido às preciosidades petrolíferas que tem.

De lá saiu para Chisinau, a capital da Moldávia onde joga o Zimbru e trabalhou entre técnicos romenos, sendo o único português. Outra aventura que acaba para uma nova o transportar longitudes asiáticas. "Vou para Ho Chi Minh, foi incrível. Qualidade de vida simples, não precisas de grandes hotéis e banquetes, a simplicidade é... não dá para explicar a simplicidade do Vietname. O mais parecido que consigo é que vives num mundo à parte, num mundo paralelo. Tudo muito calmo, sem stress nenhum", relata, alongando-se no fascínio a que cola uma justificação com a mesma simplicidade que o encantou - "precisavam de um preparador físico e lá fui eu".

Ricardo Pedro ainda iria para o Progresso de Luanda, outro safanão no mapa que não tem tempo para contar.

Ele e João Janeiro levantam-se, apressados, quando chega um telefone. Têm um almoço marcado com o presidente do Kisvárda, o motorista está aí a ver. Mais tarde irão à Puskás Aréna ver o Hungria-Portugal e no mesmo dia apanharia boleia até à cidade que fica perto da fronteira com a Ucrânia e Eslováquia.

Lá se vão os únicos portugueses a treinarem uma equipa da primeira divisão húngara. Os dois recém-conhecidos, um par que também se pode explicar com o que João, formado em marketing, em aeronáutica e com vida também passado a ser navegador aéreo, preza agora que é treinador - "o que tens de empírico na tua vida é a maior aprendizagem e valorizo isso muito mais do que um curso". Porque, "às vezes, aprende-se mais numa mesa de café do que se calhar num fórum de treinadores".

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