A Bélgica acertou apenas um remate na baliza, Portugal perdeu (1-0) e foi eliminado do Europeu nos oitavos-de-final é o resumo possível de uma despedida. O outro, é contar como a seleção se atreveu a pressionar alto os belgas, a arriscar e a jogar com os mais amigos da bola ao mesmo tempo, durante 45 minutos. Tentou remediar-se, mas só quando já não havia outro remédio e, pelo segundo grande torneio seguido, Portugal fica aquém da sorte que tem: a de ter bastante potencial para poder fazer melhor
La Cartuja não é uma ilha, tem um pedaço umbilical terrestre a ligá-la a terra mais firme, mas, no mapa, penso que por o Guadalquivir quase a rodear, descrevem-na como isla e uma das formas de a pisar é ir à boleia de um autocarro; no que ma concede, com todas as janelas escancaradas a bem de brisas que soprem vírus dali para fora, ia sentada uma mulher grisalha, quase no branco-cal, o cabelo empurrado ainda mais para atrás pelo leque que ia abanando. Às tantas, parados algures, ela fala audivelmente: “Que lo paséis bien. A disfrutar, a disfrutar”.
Falava para três portugueses, distinguíveis pelos cachecóis e camisolas, e pareceu que ela se sentara naquele assento específico, de costas para onde nos movíamos, devido ao primor dado a ter a sua particular janela para o exterior, um privado monóculo sem filtro para a vivência por onde o autocarro se intrometia. Parecia interessar-lhe mais ter um espacinho próprio, o seu espaço, afinal todos queremos o nosso espaço e para os espaços no plural muito alertou Fernando Santos quando, durante a semana, juntou quem anda a escrevinhar atrás da seleção neste Europeu.
Não importava a pergunta sobre belgas, a prudência do treinador mantinha o espaço no centro da roda de cadeiras, que eles não troquem, troquem e troquem, disse; teríamos de os amarrar, explicou, pluralizando o problema como se todos fôssemos lidar com a esperteza matreira de Tielemans, Hazard e De Bruyne, sobre estes tais belgas, os que muito trocam de posições entre si para haver sempre dois a esconderem-se nas costas de Palhinha e longe das atenções de Renato e João Moutinho. Eram espaços queridos pela Bélgica.
Quinze minutos tardou a seleção a ajustar-se à esperteza malandra. Diogo Jota ou Bernardo Silva (um à vez, mas por vezes ambos) foram chamados a socorrer os espaços para lá dos laterais e calibrarem os números na última linha de Portugal, assim garantia-se um pouco mais o controlo da largura e um dos centrais podia sair às receções em terra de ninguém. Até aí, alguém que acudisse a este prejuízo já tinha sido fisgado por frechadas do olhar de Hazard ou De Bruyne, e a bola sumia antes de sequer a verem.
Uma vez atinados, viu-se apenas um pouco de Hazard do antigamente, a sua rodopiante versão de costas para o adversário, ele doido em busca de espaço para meter um passe rasteiro na área e fazer de Lukaku parede, mas, da devolução, produziu um balão (10’); e, depois, o que parecia um cerco a De Bruyne, junto à linha, eram afinal vários peitos portugueses já tábuas de tiro ao engenho genial do belga, que viu antes de qualquer olhar uma tabela de calcanhar para lançar o ousado Meunier, que se atreveu tentar (37’) uma quaresmice com o mesmo pé de quem já machucou a Bélgica à trivelada.
Os espaços para mais eram caros, desconheço Bruxelas, mas Sevilha virava uma Lisboa de tão caro se considerava o metro quadrado, a relva em La Cartuja era guardada cautelosamente por belgas e portugueses, todos receosos em dar espaços para os outros correrem e embalarem e irem rápido para a frente. A seleção até o fez quando Tielemens caiu no engodo do encosto em Renato, convidou o tanque a virar-se e lá foi ele até deixar Jota rematar ao lado (6’). A Bélgica também, na ressaca de um livre que logo depositarem na potência de Lukaku (36’) que só uma camisola puxada frenou.
Ninguém queria dar espaços a outrem para transições rápidas, fica tu com a iniciativa, não, por quem sois, fica antes tu e a bola era um toma lá dá cá de circulação lenta. Mais de Portugal, sem ideias ameaçadoras nas opções de passe que dava a quem tinha a bola e dependente do que Renato arrancasse quando a tinha; de escrevível, só um livre de Ronaldo às mãos de Courtois (25’). A Bélgica, mesmo parecendo adormecer ainda mais o ritmo quando a bola repousava nos pés de quem roça o incrível quando a tem, arriscava um pouco mais em metade do campo alheia, farejando hipóteses de rasteirar passes em Lukaku.
Viam-se duas seleções mais preocupadas com o não permitir espaços para a outra, o espaço e sempre o espaço, na fachada autocarros desta cidade lê-se “muéveteporsevilla” e pouca gente arriscava movimentos para forçar os espaços que pretendia - os portugueses pareciam montados para os contra-ataques que não tinham, os belgas para tocar e tabelar entre as linhas que raramente se afastavam. A não ser, claro, quando se erra flagrantemente.
Quando Courtois deu risco logo na génese da jogada e ousou fintar Ronaldo, o arriscado Bernardo Silva juntou a sua pressão à de Renato contra um passe que ia para Tielemens, ambos ouviram tarde o toque, o médio livrou-se da bola e a transição rápida da Bélgica engatilhou-se até o mesmo Bernardo arriscador chegar atrasado a Thorgan Hazard, no espaço onde chegadas tardias são proibidas. O menos afamado dos manos com este apelido disparou uma bomba (42’) e a seleção nacional perdia ao intervalo.
Com o descanso feito, os mesmos portugueses retornaram ao campo e eles, e os belgas, já não partilhavam uma carta de frete, é isso que La Cartuja é se traduzida livremente e isso deixou de ser, Portugal retornou com o bloco subido e a pressionar na área contrária. E a Bélgica, perdendo cedo De Bruyne para uma lesão (47’), ganhou de volta o fabuloso dos Hazards, reminiscente de si próprio e do que era há dois, três anos, a não perder uma bola e a fintar todos os corpos para a sua equipa respirar durante o tempo em que Fernando Santos remediou a seleção.
Feitos esses 10 minutos de veremos o que dá, entrou a presença de Bruno Fernandes para os lugares certos, ele a pedir passes nos espaços indesejados para os outros e a decidir bem com poucos toques. Entrou também, e finalmente, João Félix, o mais existencialista onde custa aos outros jogadores existir, nos espaços que são espacinhos e onde ele é receções orientadas, pequenos toques e fomentador de tabelas. Portugal uniu-se em redor de ambos, Ronaldo juntou-se às tentativas de criar e não só esperar.
A seleção fez um juramento ao potencial à cabeça que leva dentro, com os que prosperam com bola e se engrandecem mutuamente encostou a Bélgica, cadente em proporção ao esvaziamento do depósito de Hazard e encaixotada com os minutos contra a própria área. Menos e menos capaz foi sendo de sair com bola de lá à medida que Portugal intensificava a pressão alta, a urgente, a caçadora do prejuízo.
E com Cristiano a arriscar de trás, tabelando e passando rasteiro para Jota, na área, a seleção teve um remate que pouco falhou a baliza (58’) e logo depois outro, da cabeça de Félix às mãos do gigantão entre os belgas (61’). O remate de qualquer lugar onde a baliza seja tentável, de Bruno Fernandes, surgiu um par de vezes e mais foram as ocasiões em que Félix estimulou ligações pelo centro do campo, os seus toca-e-vai a serem correspondidos, mas ele raramente a ser deixado rematar as devoluções que recebia do que criava. O volume de jogo era português, a iniciativa já era toda de Portugal e a vertigem atacante, o querer descaradamente jogar para engolir quem fosse que estivesse por diante, também o era.
Mentiras seriam palavras que maldissessem o que a seleção forçou e conjurou durante a segunda parte num estádio que é olímpico, o La Cartuja viu uma equipa de futebol a martelar olimpicamente outra com tentativas atrás de tentativas, Portugal a encurtar a Bélgica um espaço de 25 ou 30 metros, a marretá-la com atinadamente em vários momentos, como o canto em que o crânio de Rúben Dias não teve mira para lá das mãos de Courtois (82’) ou a sobra, logo a seguir, de um cruzamento em bola corrida que Raphaël Guerreiro atirou (83’) contra o poste direito.
E Fernando Santos desalmado, irrequieto em cima do campo onde, nestes 45 minutos, os belgas se resumiram a aguentar, a suportar o que puderam, quando se esgotou o oxigénio dado por Hazard passaram a olhar para a única fuga possível. As bolas na muralha de receções que é Lukaku foram-se sucedendo, os espaços aí eram esquizofrénicos e o avançado, sozinho, ia buscar os chutos e os pontapés para a frente que originavam idas da Bélgica até à baliza portuguesa, onde não mais acertou. A Bélgica sobreviveria com um remate feito no alvo.
Ninguém vence sem sorte, vivalma é derrotado sem azar e daqui virá o comum que há no dizer que o futebol é isto, verdade será dizê-lo e o selecionador repetiu-o, como vírgula em frases, o jogo já acabado e os seus olhos já limpos das lágrimas. Portugal perdeu por 1-0, sai nos oitavos-de-final o campeão europeu ao qual não chegou uma segunda parte a tentar remediar-se com todo o atrevimento possível quando, enfim, já não havia outro remédio.
A seleção é eliminada nos oitavos-de-final do Europeu depois de ter sido feliz na final do anterior. Nos entretantos fez quatro jogos num Mundial, onde ganhou um, e agora venceu uma partida entre as quatro que teve neste torneio saltimbanco e, das viagens a Budapeste, Munique e Sevilha sobra sensação semelhante à que ficou de Moscovo, Sochi e Saransk.
Que a seleção nacional é sortuda, sim senhor, há sorte em ter tantos e bons e muito bons jogadores disponíveis na mesma colheita selecionável - mas, desde que a fortuna se aliou a Portugal para se conquistar Paris por uma noite, parece jogar aquém do que realmente pode.
Se devia, ou não, é discussão barbuda e para outras mesas que transbordam desta conversa desde há cinco anos, quando felicíssimas ficaram muitas almas com a conquista impossível de agora ser repetida. A música é outra, no estádio não se ouvem os choros dos jogadores que Fernando Santos lamentou, La Cartuja ficará como espaço de desilusão, de tristeza esparramada por cima de tamanho potencial que havia numa equipa.
Há canções assim, tristes e tristonhas, já lá vão as décadas em que um amigo cantou para convencer outro a pegar na dele e melhorá-la. A seleção tem uma oportunidade de deixar o talento entranhar-se debaixo da pele da equipa para fazer melhor. Isso sim, deve fazê-lo.