Barcelona-Lyon: a “batalha definitiva” entre “as duas melhores equipas do mundo” junta passado, presente e futuro na catedral de Bilbau
Ramsey Cardy - Sportsfile/Getty
Em San Mamés, palco mítico do futebol mundial, o par que venceu todas as Ligas dos Campeões femininas desde 2015 irá discutir o troféu mais desejado da Europa de clubes. As catalães surgem como favoritas, apesar de negarem esse rótulo, num encontro cujos bilhetes voaram e que fará parar Bilbau
Não é por acaso que San Mamés tem esta alcunha. O estádio do Athletic Club é La Catedral porque há qualquer coisa de divino neste enorme recinto, parece haver um chamamento espiritual que une quem costuma encher estes 53.289 lugares. Há rituais e cânticos, louvores às estátuas de Iribar, o jogador que mais vezes vestiu a camisola do Athletic, e de Pichichi, avançado que se tornou tão famoso que o seu apelido virou nome de prémio dado aos goleadores.
Da parte de fora do sagrado estádio, bandeiras vermelhas e brancas ondulam nas varandas, querendo agarrar a energia mística que San Mamés emana, pegando nela e devolvendo-a multiplicada. No meio de tanta liturgia e costume, uma excecional ocasião perturbou o que seria o descanso de fim de temporada desta máquina de produzir emoções.
Numa tarde de sol em Bilbau, rara ocasião em que a chuva não está a visitar nem ameaça visitar a cidade, grupos com camisolas blaugrana — a imensa maioria — ou brancas vão-se aproximando de San Mamés. As paragens de autocarro transformaram-se em bancos de suplentes improvisados, os postes de eletricidade têm dois escudos lá gravados, diferentes multinacionais pintam a paisagem com imagens de Ada Hegerberg e Aitana Bonmatí, de Alexia Putellas e Wendie Renard.
As horas prévias ao maior jogo da época europeia feminina de clubes prenunciam a importância do jogo. Sábado (17h, TVI), Barcelona e Lyon decidirão quem vence a Liga dos Campeões 2023/24.
Florencia Tan Jun - UEFA/Getty
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“A batalha definitiva.” Numa sala incrivelmente cheia, três jornalistas questionam ambos os treinadores, nas respetivas conferências de imprensa, utilizando essa expressão bélica para fazer referência à final.
E a história, o passado, justificam esse rótulo.
Desde 2015, só estes dois clubes sabem o que é ganhar a Liga dos Campeões: o Lyon conquistou a Europa cinco vezes seguidas (2016, 2017, 2018, 2019 e 2020), o Barcelona interrompeu essa hegemonia em 2021, as francesas voltaram a ganhar em 2022, as catalãs impuseram-se na passada edição; OL, com oito títulos, é o recordista da prova, sendo esta a sua 11.ª final desde 2010; as culés vão disputar o embate decisivo do torneio pelo quarto ano seguido.
“Somos as duas melhores equipas do mundo”, garante Jonathan Giráldez, o técnico do Barça que, aos 32 anos, venceu nove dos 11 títulos que disputou desde que, em 2021, assumiu o comando técnico das espanholas. Após ganhar três troféus nesta época, este é o último que poderá erguer no clube, pois já anunciou que vai rumar aos Washington Spirit, dos Estados Unidos. Será, admite, “o jogo mais especial” da carreira.
“O nível será máximo, temos de ser quase perfeitas para vencer”, confidenciou Sonia Bompastor, a filha de portugueses que lidera o Lyon e que, em 2022, se tornou na primeira mulher a conquistar uma competição europeia como futebolista e como treinadora. Ninguém parece fugir da dimensão da cimeira da catedral.
Rivalidade? “Somos pacíficas”
A imprensa espanhola tem antevisto a final como se fosse o confronto do Barcelona contra os seus próprios medos. Duas vezes as catalãs se enfrentaram às francesas nesta fase (2019 e 2022), duas vezes perderam.
O talento, em 2024, reside em maiores quantidades do lado blaugrana, nos pés de seda de Aitana Bonmatí, no drible supersónico de Caroline Hansen, na velocidade impossível de Salma Paralluelo, na versatilidade de Mariona Caldentey. Não obstante, do outro lado mora a fortaleza da experiência, o hábito de não falhar, como se vê pela série de seis finais seguidas da Champions sempre a vencer para o OL.
Catarina Macário marca um dos golos da vitória (3-1) do Lyon contra o Barça na final de 2022
ANP/Getty
Wendie Renard, a encorpada central que sucedeu a Bompastor como capitã, esteve em todas as 10 finais anteriores do Lyon na prova. Com oito triunfos, nenhum homem ou mulher ganhou a maior prova continental de clubes mais vezes do que ela.
A defesa entra na sala de imprensa com a cara de quem vai para a guerra, séria e focada. Contrasta com o sorriso fácil da sua treinadora, mas Renard, bombardeada por questões sobre a rivalidade entre Barça e Lyon, tira peso ao tema: “Somos pacíficas”, garante, falando mesmo de “ambiente calmo” entre as adversárias. Talvez seja a tal calma antes da tempestade.
Em 2019, na primeira final entre ambas, o Lyon já vencia por 4-0 aos 30 minutos. Três anos depois, as francesas lideravam por 3-0 aos 33'. Nove futebolistas do Barça atual sofreram ambos os desaires (Sandra Paños, Mapi León, Marta Torrejón, Jana Fernández, Alexia Putellas, Patri Guijarro, Aitana Bonmatí, Mariona Caldentey e Claudia Pina), mas Aitana recusa que tenham ficado “traumas” e quer “uma equipa focada no presente”.
O legado de Aulas, o “desfrutar” de Aitana
A conferência de imprensa do Lyon parece, por momentos, uma homenagem ao passado da equipa. Fala-se de legado, das oito Champions, das duas vitórias contra o Barça.
A dado momento, Bompastor junta-se a esse tempo, fazendo questão, sem que lhe perguntassem, de “agradecer a aposta de Jean-Michel Aulas”, o homem que presidiu o Lyon entre 1987 e 2022, pioneiro em melhorar as condições de trabalho da equipa feminina. Mas, talvez por se ter dado conta do tom nostálgico do discurso em torno do Lyon, a treinadora disse que “o Barcelona tem feito um grande trabalho”, mas o clube que orienta “continua a liderar a transição para o futuro”. Aitana concorda, avisando que “o Lyon não é passado, é muito presente”, opinando que “é uma final de 50/50”.
Do lado espanhol, continua a viver-se no maravilhoso mundo de Aitana Bonmatí.Ver a Bola de Ouro em ação num simples treino leve antes de uma final é como assistir ao milagre da multiplicação da técnica, ou não estivéssemos numa catedral.
Há jogadoras que parecem ter cola nas botas, mas com Aitana o feitiço é diferente, mais como se a bola saísse de ao pé de si, mas imediatamente voltasse segundo a sua vontade, num aqui-está-agora-já não-está que confunde as adversárias. Mais do que cola, é um chamamento, levando-a a voltar quando a sua mestre a invoca.
Na sala de imprensa, Bonmatí finta tão bem como no campo. Fala espanhol, catalão e inglês, despede-se arranhando o basco — “eskerrik asko”, ou obrigado —, a voz não lhe treme nem entra em muitas frases feitas do futebolês.
Quando uma dessas ideias entra na conferência, sendo-lhe colocada a disjuntiva sobre se as finais são para ganhar ou para jogar, Aitana não duvida: “Dizem que as finais são para ganhar, mas gosto de pensar que são para desfrutar. Estes momentos são únicos, estarmos aqui é único, irmos agora treinar neste estádio é único. Merecemos desfrutar, lutámos muito por estar aqui, o futebol feminino lutou muito por ter palcos assim. Claro que temos de aproveitar.”
Catherine Ivill - AMA/Getty
Incómodo com o tema Xavi
San Mamés está, há vários dias, com lotação esgotada. Do lado do Barcelona, os bilhetes colocados à venda voaram, tardando 30 minutos para serem todos vendidos.
No meio de tanta expetativa, um tema irrompe na véspera da final. “Fogo, o meu chefe já mudou o alinhamento do programa por causa daquilo”, queixa-se uma jornalista de uma rádio catalã. “Aquilo” é a saída de Xavi Hernández do comando técnico da equipa masculina do Barcelona.
O adeus do treinador entra nas perguntas feitas a Giráldez e a Aitana. O técnico adota uma postura institucionalista, prometendo que “nada fará desviar a atenção” da final e que “são coisas que fazem parte do quotidiano de um clube”. A centrocampista é mais contundente, semi-cerrando os olhos perante a questão, evidenciando o seu incómodo.
“Não quero falar de mais nada além do jogo”, contestou.
Na grande praça onde se localiza San Mamés, há diversos cafés e restaurantes todos decorados com camisolas e cachecóis do Athletic. O dono de um deles espera negócio abundante nas horas anteriores à final. “Como se o Athletic jogasse”, diz. A associação de restauração e bares local conseguiu que a câmara municipal alargasse duas horas o horário de fecho dos estabelecimentos, permitindo maximizar o negócio.
Uma das figuras quase divinas que se vê na catedral é Iribar, o mítico guarda-redes cuja estátua parece proteger o estádio, repetindo a defesa que ele fez das redes do Athletic. Só que, esta semana, uma novidade foi acrescentada na praça, poucos metros à frente de Iribar: uma pequena estátua de uma menina, de bola debaixo do braço e cara sonhadora, olhando para San Mamés. Um piscar de olhos ao futuro, porque no futebol feminino o jogo que se joga hoje parece sempre querer ajudar a construir o futuro desta revolução.