Elas movem o mundo e transformaram “o extraordinário em normal”
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A equipa feminina do Barcelona, transformada em ícone social, consolidou a hegemonia europeia, conquistando a terceira das últimas quatro Ligas dos Campeões. Movendo multidões, num ambiente de assinalável desportivismo, Aitana Bonmatí assegura que “o êxito nunca sacia” e Alexia Putellas tem o seu momento Brandi Chastain
22 de maio de 2014, Restelo. A dias da final da Liga dos Campeões masculina, na Luz, entre Real e Atlético de Madrid, a UEFA monta, à beira-rio, uma espécie de partida acessória, de anexo, de aperitivo que nem vendido como aperitivo é.
Tyresö e Wolfsburgo disputaram, naquela tarde de primavera, o troféu da Champions feminina no estádio do Belenenses e nem a presença de craques como Marta, Christen Press ou Alexandra Popp é suficiente para encher os 19.000 assentos do campo, cuja maioria das cadeiras estava vazia. Perante uma atmosfera envolvente de quase indiferença, as alemãs venceram por 4-3.
Irene Paredes lembra-se desses tempos. Aliás, até recorda alturas mais recentes, quando “encher um estádio como San Mamés era impensável”. Uma década depois do Restelo, a central fala numa envolvência diferente, num dia diferente, num mundo diferente.
25 de maio de 2024, Bilbau. Perante 50.827 almas, novo recorde da competição, o Barcelona derrota o Lyon por 2-0 e ganha a segunda Liga dos Campeões feminina. E, como recorda Paredes, “houve imensa gente que ficou de fora, sem bilhetes”. Ao intervalo, espreitar pelos gigantes vidros que permitem ver a parte de fora do estádio do Athletic era confirmar a frase de Irene, com gente de cerveja na mão sofrendo com a partida no ecrã que — literalmente — estava mais à mão.
“Temos de ver onde, há pouco tempo, estava o clube, estava o futebol feminino, estávamos todas. Tornámos o extraordinário em normal”, diz Irene. A espanhola fala perante uma multidão de jornalistas, outra demonstração da máxima atenção mediática em torno deste desafio e desta equipa.
Após o final do encontro entre francesas e catalãs, a zona mista de San Mamés é pequena para tanto microfone e câmara. Ajuda, claro, que aqui esteja o Barcelona, com a infinidade de canais de Twitch, canais de Youtube, rádios, sites, jornais e tudo o que seja plataforma que se dedica à atualidade culé. Mas, quando Cascarino, cabisbaixa, se detém para comentar como “o Lyon tem de se reinventar para voltar ao nível delas”, também há uma concentração de braços estendidos junta à tecnicista atacante francesa.
A festa do Barça foi passando por aquele corredor, com a guarda-redes Cata Coll a garantir que agora se iria “dançar até às 9 da manhã”.
A zona mista de San Mamés. Ao fundo, atrás dos muitos jornalista, está Salma Paralluelo
D.R.
Aos 20 anos, Salma Paralluelo já ganhou tudo. Duas Ligas dos Campeões, um Mundial, uma Liga das Nações, uma liga espanhola, uma Taça do Rei, duas Supertaças de Espanha - isto depois de colecionar títulos no atletismo antes de ser adulta.
A extrema fala com a mesma velocidade com que se desmarca. Questionada sobre onde está a motivação para voltar a vencer quando se tem uma vitrina cheia sendo pouco mais que uma adolescente, ela encolhe os braços e atira: “Se sonharmos em grande, conseguimos em grande. É voltar a fazer tudo novamente.”
Aitana e Alexia, Alexia e Aitana
Quando alguém domina uma modalidade como Aitana Bonmatí, o cérebro imediatamente pede que se lhe coloquem rótulos monárquicos. Mas aqui, no Barça, todos sabem quem é la reina.
Depois de uma lesão grave de joelho, seguida de uma difícil recuperação e da novela quanto à sua renovação de contrato, Alexia Putellas foi suplente em San Mamés. Deve ter sido “lixado” para a média, comentou Irene Paredes na zona mista.
Não obstante a perda de protagonismo, a importância social de Putellas vê-se nas ruas de Bilbau. Entre a enorme invasão de camisolas do Barcelona à terra basca, muitas são de Alexia, que é uma das futebolistas — mulher ou homem — que mais rende comercialmente ao emblema liderado por Joan Laporta.
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Ainda assim, a monarca teve o seu momento de consagração no epílogo do jogo, apontando o 2-0. A celebração promete transformar-se em ícone: tirou a camisola e correu num grito de raiva e alegria. Na bancada de imprensa, o nome de “Brandi Chastain”, a norte-americana que tirou a camisola no Rose Bowl após dar o título mundial ao seu país, em 1999, foi imediatamente ouvido.
Alexia não parou na zona mista. Passou de cerveja na mão, saltando e cantando, mas antes falou à “DAZN”, confessando que “não se controlou” e ficou “maluca” ao marcar. “Os últimos anos foram duros, isto dá sentido a tudo o que fazes. É um dos dias mais felizes da minha vida”, explicou.
Mas se, formalmente, o trono permanece de Alexia, futebolísticamente a coroa é de Aitana. Bonmatí marca em campo, fala com desenvoltura fora dele, tem o seu nome omnipresente nas camisolas de um sem-fim de meninas e meninos.
Sonia Bompastor, a filha de portugueses que treina o Lyon, sabia que as suas jogadoras não podiam recuar muito no terreno. Perante a qualidade do Barcelona, explicou na conferência de imprensa, “se baixas em demasia, num dado momento, acontece”.
“Acontece”, como se fosse o cair da chuva quando as nuvens de Bilbau aparecem. Inevitável. Como Aitana, que quando as culés passaram a rodear a área, encontrou espaço e marcou.
Poucas desportistas ter-se-ão banhado tanto em glória nos últimos anos como Aitana, novamente eleita a MVP da final. Mas ela garante que “o êxito nunca sacia”, “nunca é suficiente”.
Uma fenómeno social… rumo a Alvalade?
A equipa feminina do Barcelona não é Taylor Swift, mas aqui também há algo dessa cultura pop, de peregrinação massiva de jovens, de encontrar um objeto de devoção na vida. Esta base de adeptos é incrivelmente mais adolescente e feminina do que se veria numa final europeia masculina.
Em linha com o que se viu, por exemplo, no Euro 2022 ou no Mundial 2023, também aqui o ambiente é saudável e, utilizando linguagem em voga em 2024, pouco tóxico. Há tensão, há nervos, roem-se unhas durante o jogo, não há défice de carga emocional nem de relevância desportiva. Mas a convivência pacífica entre adeptos do Barça — em esmagadora maioria — e do Lyon é a nota dominante.
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“Movem o mundo.” A expressão, inscrita numa enorme tarja que foi mostrada atrás da baliza na qual Aitana e Alexia marcaram, tornou-se quase o lema oficioso desta equipa. E faz jus à ideia de revolução expressa, uma vez mais, nas ponderadas palavras de Irene Paredes.
“Há cinco anos estávamos muito longe do Lyon, agora somos nós a referência”, aponta a central. Em 2019, na primeira final de Champions do Barça, as francesas já venciam por 4-0 aos 30'. Toda a gente no clube assume esse momento como a grande derrota necessária para acelerar o processo de crescimento.
Já passa da meia-noite em Bilbau e as ruas perto do San Mamés estão cheias de culés festejando. Numa zona cheia de bares de bebida barata, na qual o botellón não incomoda as autoridades, umas duas dezenas de raparigas celebram, dançando em roda e cantando. Têm, quase todas, camisolas de Aitana e Alexia, mas também de Messi.
Quando é tentada uma aproximação para dialogar sobre esta febre, uma das adolescentes saca de um tambor e começa a tocar. A única palavra que o ouvido da rapariga vestida à Alexia capta é “Portugal”. “Ah, Portugal… Lisboa! El año que viene estamos en Alvalade!”.
A 23, 24 ou 25 de maio de 2025 (a UEFA ainda não confirmou a data), a final da Liga dos Campeões feminina será em Alvalade. E não há dúvidas sobre qual é, desde já, a equipa favorita a erguer o troféu na casa do Sporting.