Iuri Leitão não atacou quando o francês que levaria o ouro caiu. Preferiu a consciência: “Foi justo. Quis ter a certeza que ele estava bem”
HUGO DELGADO/Lusa
O medalhado de prata no Omnium apareceu na zona mista ainda a “tentar processar” a conquista. Explicando o que fez quando Thomas caiu, porque “seria injusto ele perder o ouro daquela forma”, o ciclista contou ainda que não ouviu o sino na corrida de eliminação, a qual fez quase por inteiro com a roda partida, fruto de um choque com outro corredor. Feliz pelo feito “especial”, acaba por relativizar a proeza: “Não há nenhuma prova mais importante que esta, mas não deixa de ser ciclismo. É a minha profissão, mas faço isto porque adoro.”
Iuri Leitão surge no velódromo de Saint-Quentin-en-Yvelines ainda cheio de marcas das três horas anteriores, quando conseguiu a 30.ª medalha da história olímpica portuguesa. O corpo está suado, a voz emocionada, a respiração vai, lentamente, retornando à calma.
Depois de receber a medalha de prata, Iuri Leitão trincou-a. “Já está marcada”, brinca, agora que provou o sabor da Torre Eiffel, cujos pedaços estão em cada um dos prémios que se atribuem a quem sobe ao pódio nestes Jogos Olímpicos.
O alvoroço em torno do corredor que nasceu há 26 anos em Viana do Castelo é grande. Já cumprimentou a família, já se uniu em abraços com vários responsáveis da Federação Portuguesa de Ciclismo, nomeadamente Gabriel Mendes, selecionador nacional e grande ideólogo e mentor da revolução que aconteceu na pista depois da inauguração, em 2009, do velódromo de Sangalhos.
Iuri Leitão ainda está “a tentar processar tudo”. Sabe que o resultado “é especial”, mas é incapaz de quantificar “o quão especial é”. Na montanha-russa de emoções, naquele homem com um pedaço de prata ao peito e o cansaço a massacrar o corpo, outro pormenor destaca-se.
As mãos de Iuri Leitão. Cheias de feridas, feridas ainda não saradas. São mãos massacradas pelas marcas de uma queda sofrida três semanas antes dos Jogos. Enquanto treinava, o ciclista da Caja Rural foi ao chão mas manteve sigilo do incidente “para não afetar a cabeça”, nem para “dar informações aos adversários”.
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Foram aquelas mãos cheias de marcas — marcas que, num olhar mais atento, se espalham por todo o corpo — que receberam a medalha de prata. Ao subir ao pódio, a emoção de Iuri Leitão foi evidente, um choro potenciado por estas feridas de guerra, quais provas do que há que fazer para estar aqui.
“Sofre-se mais a treinar do que a competir. Passamos dias muito complicados para isto”, indica Leitão. Em relação às marcas da queda, diz que “todos as têm”.
“Tenho eu, tem o ciclista que ganhou, tem o último.”
Iuri Leitão começou a acreditar seriamente que venceria uma medalha “a umas 20 voltas do fim”. Teve um começo da corrida por pontos, a derradeira das quatro provas que compõem o Omnium, mais “conservador” porque “nunca sabemos quando as forças vão acabar”.
Já dentro dessas duas dezenas de voltas definitivas, a margem do português para o terceiro, o belga Fábio Van den Bossche, já era considerável, estando a prata praticamente garantida. Aí, o vianense começou “a olhar mais para cima”, isto é, para o francês Benjamin Thomas, que desde o começo pareceu o mais forte do velódromo.
Já quando era evidente que o português estava a atacar o homem da casa, Thomas caiu. Segundos depois do contacto do líder da competição com o chão, quando este ainda se estava a tentar recompor perante o silêncio de susto que se fez no velódromo, houve um sprint. No Omnium, a cada 10 voltas há uma disputa para ficar em primeiro, ganhando-se cinco pontos.
Ter conseguido vencer aquele sprint teria aproximado muitíssimo Iuri Leitão da hipótese de ganhar o ouro, um ouro histórico, já que seria o primeiro campeão olímpico português fora do atletismo. Só que o ciclista não se fez àquela luta, não se fez à disputa daqueles cinco pontos que, matematicamente, poderiam ser decisivos.
A razão é a saúde de Benjamin Thomas e uma consciência que, à noite, quer dormir em paz com a almofada: “Quis ter a certeza que ele estava bem e que poderíamos voltar a discutir o ouro de forma justa”, começa por contar o medalhado de prata, prosseguindo. “Seria injusto ele perder o ouro daquela forma, quis ter a certeza que ele voltava.”
Minutos depois da queda, houve uma aceleração de ritmo e Thomas estava no grupo dos que iam mais rápido, juntamente com Iuri. Era evidente que a sua condição física continuava voadora, como estivera durante toda a tarde. “A minha consciência ficou aliviada por saber que ele estava bem e que poderíamos continuar a nossa batalha. No fim, tentei a minha sorte para ganhar o ouro, mas ele estava muito forte. Foi justo”, diz um sorridente português, de bem consigo próprio.
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O Omnium começa com o sratch, continua com a tempo race, passa para a corrida por eliminação e termina com a prova por pontos. De todas, a segunda é a mais brutal, uma constante luta pela sobrevivência, já que, de duas em duas voltas, o último a cruzar a meta é eliminado.
Há muitos nervos, toques, empurrões. Vendo de fora, parece que vai haver quedas a qualquer momento, tal é a velocidade e a proximidade entre corredores que vão rapidíssimo. Não é por acaso que muitos dos que brilham na pista, como Iuri Leitão, são sprinters na estrada, habituados a chegadas em pelotão compacto, frenéticas e caóticas.
Essa disputa começou, para o português, da pior forma. Logo numa das primeiras voltas ouviu-se um estrondo no vélodromo. Era o som da roda dianteira de Leitão a ir contra a roda traseira de um adversário, partindo-se. Para a corrida por pontos, Iuri levou uma roda dianteira diferente.
Apesar de correr com esta desvantagem competitiva, Iuri manteve-se em prova na eliminação até à ponta final da corrida. Aí, um momento levou à confusão: pareceu que o francês Benjamin Thomas fora o último a passar a meta, sendo desclassificado, mas, afinal, foi o colombiano Fernando Gaviria a sair de prova.
Houve um instante de hesitação, alguns segundos para corrigir o veredicto inicial. Naqueles instantes, Iuri, que ia “descontraindo”, sentindo-se “muito bem” e “avaliando a situação de corrida”, não ouviu a campainha que, efetivamente, soou, indicando que no final daquela volta haveria um sprint. Para seu espanto, os adversários começaram a acelerar e quando o português se apercebeu já era tarde, ficando em último e sendo eliminado.
O medalhado de prata abriu os braços quando a situação se deu, mas recusa entrar em polémicas: “Não vou dizer que não foi culpa minha, não ouvi, terei de rever a situação. Mas não há nada a fazer, é seguir, a prova mais importante [corrida por pontos] estava por vir e não nos podemos martirizar.”
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Ao contrário do que sucede na maioria das modalidades individuais, o apuramento olímpico no ciclismo não se dá graças a um qualquer ranking ou marca que se faça. A presença nos Jogos baseia-se nos rankings que cada país tem, não havendo corredores que se apurem diretamente, mas sim um determinado número de quotas por nação, cabendo, depois, a cada seleção escolher os seus representantes.
Os bons resultados na pista permitiram que, pela primeira vez, houvesse vagas masculinas para a equipa nacional em Jogos. Portugal conseguiu uma vaga no Madison, prova em que se compete em duplas, o que, por inerência, garantiu um bilhete para o Omnium, o qual tinha de ser utilizado por um dos ciclistas a competir no Madison.
As primeiras palavras de Iuri Leitão depois de garantida a medalha foram de “orgulho” por ter sido “o selecionado” para “representar o país”. “Por mais que para muita gente fosse óbvio [ser Iuri o escolhido], por eu ser o campeão do mundo, para mim não era, tenho colegas muito fortes e tentei honrá-los da melhor forma.”
Os pré-selecionados por Gabriel Mendes para a pista masculina foram Diogo Narciso, Ivo Oliveira, João Matias, Rui Oliveira e Iuri Leitão, estes dois últimos os que farão parelha no Madison, a decorrer sábado.
A “homenagem” que Iuri fez aos que ficaram de fora de Paris tinha contornos gráficos, já que, no capacete do medalhado, foram escritas as inicias de Diogo Narciso, Ivo Oliveira e João Matias. No entanto, antes da competição, a organização “não permitiu que aquelas letras estivessem no capacete”, lamenta Leitão, que destaca que o ciclismo de pista nacional “é como uma família”.
A tentar processar as emoções depois de três horas que massacram os pés e desgastam a cabeça, que está sempre a fazer contas, Iuri Leitão não escapa à grandeza do feito que obteve, mas lança uma mensagem de naturalidade:
“Não há nenhuma prova mais importante que esta, mas não deixa de ser ciclismo. É a minha profissão, mas faço isto porque adoro. Dá-me muito gozo, é uma adrenalina muito boa. No final de contas, é só uma competição com os melhores do mundo, é um gosto enorme partilhar a pista e lutar com eles ombro a ombro. Só tenho de estar agradecido e contente por estar aqui, não vale a pena estar com stress desnecessário”.