Ana foi mãe, três meses depois marchou nos Jogos e responde à “burrice” das pessoas: “Não nos julguem se levam anos sem saber quem somos”
Christian Petersen
Só Ana Cabecinha, a valente marchadora portuguesa, sabe aquilo que passou para ter ido a Paris competir uns três meses depois de ser mãe. Ficou em último lugar na prova da marcha, acabou a beijar o filho e em lágrimas. Nas redes sociais viu elogios, mas também o ódio dos iluminados atrás de um teclado. E agora dedicou umas palavras à “burrice” das pessoas: “Podia ter desistido? Podia. Mas quis cumprir o meu desejo de atleta/mãe. Ter sido última não me orgulha, mas o simples facto de ter chegado ao fim com tão pouco tempo de treino deixa-me satisfeita. Não critiquem os atletas portugueses quando não sabem a dureza pelo que passamos.”
Era desnecessário ser um génio, sequer um iluminado intelectualmente, para se concluir que a ida de Ana Cabecinha aos Jogos Olímpicos, feita por inteiro de mérito próprio, ia equivaler a um sofrimento certo para a portuguesa. Aos 40 anos, lá esteve, bem cedo pela manhã, a marchar 20 quilómetros nas ruas de Paris em uma hora, quarenta e seis minutos e trinta segundos, um tempo que não teve pior entre as 43 atletas que terminaram a prova, mas melhor do que as duas que desistiram e vitorioso em relação a todas as mulheres que competiram no tipo de andadura que obriga a ter sempre um pé em contacto com o chão:
Nenhuma, como Ana Cabecinha, tinha sido mãe há pouco mais de 90 dias.
Apenas uma mulher com uma gravidez vivida saberá as naturais consequências que tal deixa no seu corpo, marcas ainda mais inculcadas pela maternidade quando a portuguesa não competia desde agosto do ano passado, desde a hora, vinte e oito minutos e quarenta e nove segundos em que marchou os 20 quilómetros e garantiu a qualificação para os Jogos Olímpicos. Ela, mais ninguém. Não houve um apuramento ofertado. Ana Cabecinha quis ir a Paris, treinou arduamente, levou o filho bebé, beijou-o na última volta que terminou em lágrimas, a sofrer no corpo e inundada por emoções, disse então que o seu intuito “sempre foi acabar e começar” e que a sua “medalha” estava “na parte de fora do percurso”.
No final agradeceu o aplauso que muitas pessoas lhe prestaram na meta, foram palmas para uma guerreira, vénias sonoras de reconhecimento, ela comovida por vencer a provação. “Muitos nem se lembram do calvário que os atletas passam para chegarem a uns Jogos, por isso, saio daqui a de cabeça erguida, dei o meu melhor e é isso que conta”, desabafou também, no momento que se julgava de despedida, um ciclo a fechar-se com glória por gloriosa ser a mãe que três meses após dar à luz arranjou forças de ocupar um lugar seu por direito, conquista e sacrifício. Mas, compelida por quem não achará o mesmo, Ana Cabecinha quis voltar a falar.
Uma semana finda desde a participação nos Jogos, a marchadora recorreu ao Instagram, terreno que a terá presenteado com “palavras que magoam” vindas da “falta de cultura desportiva ou burrice mesmo”, para responder a essas várias pessoas a quem Ana Cabecinha, simpatica e eufemisticamente, endereçou um longo desabafo.
A atleta leu “coisas menos boas” vindas gratuitamente de gente a falar “do que não sabe” e ignorar tal facto com os seus dedos postos a teclarem, mas a portuguesa explica: “Fui a Paris por mérito próprio, ninguém me ofereceu nada, não roubei lugar a ninguém, nem fui passear. Treinei com muita dureza grávida depois de passar por uma cesariana e um parto duro em que tive o meu filho nos cuidados intensivos três dias.” Ana Cabecinha teve o seu bebé em Paris, ali bem perto, mesmo ao lado da pista. “Não abandonei o meu filho para ir competir, esteve sempre com o pai e os tios, é feliz e cheio de vida e energia. Foi muito mimado por todos da comitiva portuguesa e a comunidade olímpica no geral.”
Notando o teor das frases escritas pela marchadora, natural de Beja e quarta classificada dos Mundiais de 2015, resultado de destaque a par do 6.º lugar obtido, antes e depois, nos Jogos de Londres e do Rio de Janeiro, pressupõe-se o tipo de mensagens que terá recebido enquanto esteve em Paris.
MOHAMMED BADRA
Ana Cabecinha insistiu, mais um pouco, na desconstrução das críticas vindas de quem desconhece os contextos, talvez nem tenha massa cinzenta para saber da sua existência. “Não nos podem apontar o dedo ou julgar quando levam três anos sem saber quem somos e nos dias dos Jogos Olímpicos é que se acham no direito de criticar, não sabendo pelo que passamos diariamente, o que deixamos para trás para darmos o nosso melhor pelo nosso país”, explicou, não se ficando por aí: “Podia ter desistido? PODIA. Mas quis cumprir o meu desejo de atleta/mãe em ir a Paris depois de dois anos a lutar para me qualificar e ser olímpica pela última vez. E serei eternamente grata ao Comité Olímpico Português por ter proporcionado este feito.”
“Ter sido a última”, como se descreve ao espelho dos resultados, “não me orgulha”, mas esse lugar existe à escala numérica, na classificação que existe para ordenar e não para criticar em Jogos Olímpicos, ninguém melhor do que Ana Cabecinha para o atestar. “O simples facto de ter chegado ao fim com tão pouco tempo de treino deixa-me satisfeita.” Portugal contou quatro medalhas e 14 diplomas no embrulho trazido de Paris, mas, no intangível e injusto que é comparar sacrifícios de 73 atletas, o da marchadora ficou a dever a nenhum.
E ela, a última classificada dos 20 quilómetros de marcha, fez questão de a última frase do seu desabafo ser a mais valiosa: “Termino dizendo que não critiquem os atletas portugueses quando não sabem a dureza pelo que passamos.”