Tribunal Europeu dos Direitos Humanos confirma discriminação contra Caster Semanya, a atleta impedida de correr por causa da testosterona
Ezra Shaw
O recurso da sul-africana visava combater as regras que limitam a determinadas provas a participação das atletas com diferenças de desenvolvimento sexual, mas também que as obrigam, a fim de estarem a aptas a competir, a fazerem tratamentos para redução de testosterona
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) deliberou que as regras que regem o atletismo têm discriminado a atleta Caster Semanya, uma decisão que poderá ditar a transformação dos regulamentos.
O recurso da sul-africana, especialista nos 800 metros, visava combater as regras que limitam a determinadas provas – até 400m ou a partir de 1.6 km – a participação das atletas com diferenças de desenvolvimento sexual, mas também que obrigam essas mesmas atletas, a fim de estarem a aptas a competir, a fazerem tratamentos para redução de testosterona.
De acordo com a “Associated Press”, a contagem no Tribunal de Estrasburgo ditou um 4-3 favorável a Semenya, campeã olímpica nos Jogos de Londres e Rio de Janeiro, em 2012 e 2016, sempre nos 800 metros, os tais em que não pode competir desde a decisão da Associação Internacional de Atletismo, em 2018. Desde então, a atleta de 32 anos tem enfrentado a World Athletics, que recentemente excluiu as atletas transgénero das provas femininas de atletismo, uma história que nada tem a ver com Caster Semenya.
A “BBC” revelou, na manhã desta terça-feira, que a vitória de Semenya surge depois de duas derrotas nos tribunais, uma delas após uma ação contra o governo suíço por este não ter protegido os seus direitos. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos posicionou-se ao lado da atleta, considerando que o governo de Berna não protegeu mesmo Semenya de ser discriminada quando, em setembro de 2020, o Supremo Tribunal daquele país se recusou a anular uma decisão do Tribunal Arbitral do Desporto, que manteve as regras da federação de atletismo.
Na altura, impossibilitada de defender o trono olímpico em Tóquio, Semenaya acusou a World Athletics de estar errada. “Estou muito desiludida com esta decisão, mas recuso que a World Athletics me drogue ou me impeça de ser quem sou”, declarou então. “Excluir atletas femininas ou prejudicar a nossa saúde apenas por causa das nossas capacidades naturais coloca a World Athletics no lado errado da história. Continuarei a lutar pelos direitos das atletas femininas, tanto na pista como fora dela, até que todas possamos correr livres, como nascemos.”
No acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pode ler-se também que foi negado à corredora um “recurso efetivo” contra a já mencionada discriminação, quando o Tribunal Arbitral do Desporto e o Supremo Tribunal da Suíça negaram os seus dois recursos anteriores que visavam as regras impostas, as mesmas que já haviam afetado outras atletas, como Beatrice Masilingi e Christine Mboma, ambas da Namíbia.
Quando nasceu em Ga-Masehlong, na África do Sul, Caster Semenya foi considerada uma bebé do sexo feminino e criada como mulher. De acordo com as informações disponibilizadas na imprensa, a sul-africana sofre de uma condição intersexual chamada ‘46 XY DSD’, na qual uma das características é um nível de testosterona mais elevado do que habitualmente é observado nas mulheres.
Em julho de 2022, Semenya voltou aos Mundiais de Atletismo, o que não acontecia desde 2017. Como estava impedida de competir na prova em que foi rainha tantas vezes - e por ter recusado os tais tratamentos hormonais -, a africana aventurou-se nos 5.000 metros. Acabar aquela prova foi, segundo a própria, “uma bênção”. Terminou na 13.ª posição, a quase um minuto da vencedora, em 16 participantes, ficando assim afastada da final.
Perante as impossibilidades de correr na sua especialidade, Semenya declarou que se tratava de “uma afronta ao espírito do desporto”. Agora, tanto tempo depois, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos está do seu lado. E o atletismo pode mudar, pelo menos para as pessoas com a condição da sul-africana.