3 de abril de 1975: o dia em que Bobby Fischer ficou sem o seu título mundial de xadrez. Por se recusar a defendê-lo
David Attie/Getty
Há 45 anos, Bobby Fischer, o genial e perturbado xadrezista norte-americano que um dia ousou interromper o domínio soviético, viu-lhe ser retirado o seu título mundial conquistado em 1972, depois de recusar comparecer no duelo com Anatoly Karpov. Por paranóia, cisma ou simplesmente por medo, até hoje ninguém sabe
Fosse assim com esta facilidade que as coisas funcionassem e olhar com uma lupa para dentro da massa de cérebro de Bobby Fischer seria algo assustador e fascinante ao mesmo tempo. Por um lado teríamos a imagem do génio, o homem das jogadas de ataque impossíveis nesse cenário de guerra em versão casa de bonecas que é um tabuleiro de xadrez. Teríamos o prodígio que aos 15 anos já era Grande Mestre (o mais jovem de sempre naqueles anos 50) e que um ano antes disso havia sido campeão dos Estados Unidos. Mas do outro lado estaria um buraco negro: a paranóia, a raiva, os ressentimentos tantas vezes infundados, os medos paralisantes.
Em plena Guerra Fria, o título mundial de Bobby Fischer em 1972 frente ao soviético Boris Spassky foi muito mais que um título mundial ou uma questão de desporto. Os xadrezistas da União Soviética dominavam o tabuleiro desde o fim da II Guerra Mundial e a chegada de um novo desafiador, um jovem nascido em Chicago mas criado nas ruas de Brooklyn tornou, de repente, mediático o mais intelectual dos desportos.
E como qualquer combate de boxe, também aquele Mundial de 1972 ganhou o seu apodo, "O duelo do século" chamaram-lhe, porque nunca antes uma disputa entre dois homens em frente a um tabuleiro de xadrez tinha envolvido patrocinadores, transmissões televisivas e um prize-money tão avultado. Bobby Fischer poderia parecer a lufada de ar fresco no meio daqueles cinzentões Grandes Mestres soviéticos, mas a sua personalidade tinha tanto de cativante como de complicada. Já em Reiquejavique, capital da Islândia, lugar neutro e perfeito para um confronto ocidente/oriente, Fischer queixou-se um pouco de tudo, até das cadeiras, e no primeiro jogo deitou tudo a perder com um erro. No 2,º, nem sequer apareceu, perdeu por falta de comparência e ameaçou boicotar o resto da final caso o duelo não passasse para uma sala sem público. As pessoas incomodavam-no, dizia.
Com o impassível Spassky, homem que havia aprendido a jogar xadrez num comboio durante a fuga da sua família do cerco de Leningrado na II Guerra Mundial, a aceitar todas as exigências do rival norte-americano, Fischer partiu daí para um vitória convincente. De uma só vez, tornou-se no primeiro homem nascido nos Estados Unidos a conquistar o título mundial e deitou abaixo o papão soviético. Estava aí à porta uma nova era, naqueles anos em que a mais pequena coisa era uma luta de punhos entre os Estados Unidos e a União Soviética, fosse o xadrez ou a corrida ao espaço.
Acontece que a chegada ao topo foi uma espécie de acelerador de partículas para o estranho cérebro de Bobby Fischer. Obstinado e delirante, acreditava que os adversários lhe queriam envenenar a comida, que lhe colocavam escutas nos quartos de hotel, que se juntavam para o tramar e passou a ter medo de andar de avião - a sua mente acreditava que os soviéticos o queriam matar.
Os tempos eram de paranóia e Fischer era o seu filho imperfeito.
E foi assim que de repente se chegou a 1975, com Fischer adormecido nas suas cismas, quase sem competir, com um título mundial para defender. No ano anterior, o norte-americano exigiu desde logo uma mudança nas regras de pontuação: o vencedor seria o primeiro xadrezista a chegar às 10 vitórias e os empates deixariam de contar. E caso o score chegasse aos 9-9, o campeão reteria o título, com o prize-money dividido em duas partes iguais. No congresso da FIDE, a federação internacional de xadrez, em 1974, em Nice, a primeira proposta de Fischer foi aceite, a segunda não. E Fischer, ao saber da notícia, recusou-se a defender o título mundial.
A FIDE ainda deu tempo a Fischer para que este reconsiderasse, esperava-o em Manila um duelo com mais um homem nascido para lá da Cortina de Ferro, Anatoly Karpov, que no caminho para o jogo do título havia batido de forma convincente Boris Spassky. Mas Fischer nunca mais deu de si. A 3 de abril de 1975 a FIDE retirou o título ao norte-americano e entregou-o a Karpov.
Já depois da morte de Fischer em 2008, Gudmundur Thorarinson, um dos organizadores do duelo entre Fischer e Spassky em 1972, diria ao "The Guardian" que todas as exigências que Fischer fez à FIDE para comparecer na defesa do título não passaram de um subterfúgio: Fischer tinha, essencialmente, medo de perder, medo de sair humilhado daquele duelo depois de três anos em que praticamente não competiu.
Nos anos seguintes, Fischer tornou-se num fantasma e as suas parcas aparições aconteceram sempre pelos motivos mais bizarros. Foi preso nos Estados Unidos depois de ser confundido com um assaltante de bancos, dedicou-se a uma seita religiosa e às suas mirabolantes teorias sobre o fim do mundo que, até ver, não se concretizaram. Em 1992 reapareceu numa Jugoslávia dilacerada pela guerra civil para um infame duelo de exibição com Spassky, um revival do Mundial de 1972, com um prémio de 5 milhões de euros oferecido por um negociante de armas. Avisado que incorria numa pena de prisão caso voltasse aos Estados Unidos - havia então um embargo dos EUA à Jugoslávia -, Bobby Fischer não ligou e participou mesmo no encontro, que viria a ganhar.
A partir daí vagueou pelo mundo até ser preso no Japão em 2004, a tentar sair do país com um passaporte não válido. Na prisão, pediu ajuda à Islândia, o pais que o viu ser campeão do Mundo. O país nórdico deu-lhe a nacionalidade, por questões humanitárias mas também como agradecimento. Afinal de contas foi Fischer que naqueles dias em 1972 colocou a ilha no mapa.
Foi então na fria e isolada Islândia que passou os últimos dias, praticamente sem amigos, quase em reclusão. Morreu em janeiro de 2008, os rins falharam-lhe e ele não quis qualquer tipo de tratamento. Tinha 64 anos.