O que dizem os teus números

O que dizem os números do descalabro da seleção em Dublin: demasiados cruzamentos previsíveis e poucas brasas espalhadas no drible

O que dizem os números do descalabro da seleção em Dublin: demasiados cruzamentos previsíveis e poucas brasas espalhadas no drible
JOSE SENA GOULAO

Contra uma Irlanda a defender-se em bloco baixo, fechada lá atrás e a dar a iniciativa, Portugal redundou-se a tentar chegar à baliza através de cruzamentos, mas sem sucesso: fez 29 e só acertou quatro no meio dos altos centrais adversários. À previsibilidade no jogo com a bola faltou quem ousasse fazer coisas diferentes, mas, em 97 minutos de jogo, a seleção tentou apenas nove dribles

Jake O’Brien é um matulão de 197 centímetros dos pés à cabeça. Nathan Collins mede os seus 1,93 metros. A versão de humildade em altura do trio está nos 188 centímetros de Dara O’Shea. Constatar que os três centrais com que a Irlanda jogou são altos serve como exercício de redundância, um que a seleção nacional replicou durante os 97 minutos do jogo em Dublin em que fez 29 cruzamentos. Colocar a bola na área repleta de corpos foi um o plano que Portugal repetiu, insistiu e tornou cada vez mais previsível com o decorrer da partida, forçado tal devido à pobreza das suas ideias.

Apenas quatro desses cruzamentos chegaram a um jogador português, uma eficácia de 14% segundo os dados da aplicação Sofascore. Os da UEFA são mais simpáticos, indicam que Portugal acertou sete em 23 (30%). Ser alto não equivale a competência no ar, nem o facto de O’Brien, Collins e O’Shea jogarem no Everton, Brentford e Ipwich Town, equipa da Premier League e do Championship ingleses, significa que estivessem habituados ao jogo aéreo ou a lidar com assaltos à área. Mas os clichés são-no por terem fundamento. No miolo de um bloco baixo e compacto na sua área, a terem de cobrir pouco espaço e a atacarem de frente os cruzamentos que quase nunca vieram de um jeito inesperado, os três centrais da Irlanda foram controlando a teimosia de Portugal em abusar da única arma que pareceu ter.

Os centrais irlandeses acabaram o jogo em Dublin, respetivamente, com sete, 10 e oito alívios de bola feitos, que implica tirá-la da zona que defendiam. Juntos, somaram 25 dos 41 conseguidos pela Irlanda, números sem truques de uma estatística básica tal como se mostrou o jogo ofensivo de Portugal. Ao todo, a Irlanda reclamou 21 dos 33 duelos aéreos da partida (64%). “A nós faltou um propósito”, resumiu Roberto Martínez na flash-interview da RTP. Terá pecado por zelo na avaliação: à seleção faltou foi mostrar mais do que só um desígnio na forma de tentar chegar à baliza adversária. 

Mais ainda, na maneira com que tirou os cruzamentos: posto à direita, o destro Diogo Dalot cruzou uma vez com o seu pé preferido, dando à bola um efeito de fora para dentro e na direção da baliza; Bernardo Silva, canhoto à esquerda, fez cinco destes cruzamentos com jeito inswing. Francisco Trincão juntou outros dois da direita, quando entrou. Não eram bolas cruzadas de ângulos desafiantes, ao contrário dos cruzamentos que Rúben Dias e Rúben Neves ainda tentaram a partir da esquina da área, no centro-direita, de onde podiam apanhar os defesas em contra-pé e colocar a bola entre as suas costas e o guarda-redes.

A partir da ala, só Nélson Semedo (cinco cruzamentos com ‘efeito banana’ para longe do alvo) e João Cancelo (dois) divergiram um pouco. E este último foi o único capaz, na primeira parte, de encarar adversários no drible, ser descarado no um contra um e causar desequilíbrios sozinho, à largura. Foi substituído ao intervalo por ter um cartão amarelo.

Com uma equipa tão desinspirada no coletivo, sem dinâmicas que sacudissem a coesão do bloco irlandês, ter quem abanasse a organização adversária com um rasgo individual, algum golpe de asa, cedo se demonstrou uma carência gritante. Durante 45 minutos só Cancelo o tentou. Rafael Leão jogou nem meia-hora. Francisco Trincão igual, ambos entraram aos 63’. ‘Chico’ Conceição ficou sentado no banco. A seleção tentou nove dribles em 97 minutos de jogo, cinco deles bem-sucedidos. As brasas não se acenderam, quanto mais serem espalhadas. Atravancada em previsibilidade a gerir a muita bola que teve (acabou o jogo com 77% de posse), à seleção que vive apetrechada de talento faltaram agitadores. Faltou finta, essa comodidade cada vez mais rara no futebol.

Tantos cruzamentos traduziram-se em 38 toques na bola dados por jogadores portugueses dentro da área contrária, pouco mais do que os 29 conseguidos pela Irlanda no reduto de Portugal, mas sem sequer um terço dos passes feitos (164 contra 732) e com metade das chegadas (36 e 70) ao último terço atacante. As abismais diferenças nos dados que refletem a iniciativa de jogo não tiveram correspondência no produto final: os irlandeses remataram 13 vezes dentro do retângulo, a seleção acabou com 14. A muita parra nas estatísticas a refletir a postura irlandesa no encontro - baixar linhas, dar a bola a Portugal, esperar por recuperações para contra-atacar rápido - resultou em pouca uva para Portugal.

Charles McQuillan

Bernardo Silva teve razão quando falou após o jogo, não apenas por “enfrentar uma linha de cinco” defesas ser “das coisas mais difíceis do futebol”. Também pelo que isso implica. A Irlanda teve sempre cinco jogadores na sua última linha, mais quatro numa linha intermédia, às vezes cinco, montada logo à frente. Mantiveram-nas coladas e em torno da área. Foi uma unidade constante de 10 corpos, um bloco organizado e comprimido em 30 metros. Quantos mais jogadores em tão curta zona do campo, menos espaço há por onde o adversário pode jogar com a bola. E Portugal raramente jogou dentro do bloco irlandês.

Há várias formas possíveis de lidar com uma equipa a defender-se tão recuada, com uma linha de cinco jogadores, sem contestar a posse de bola: trocar passes rápidos para obrigar os adversários a correrem, cansando-os; ter jogadores abertos em cada ala, a toda a largura do campo, para forçar a última linha a esticar, alargando os espaços entre os adversários; ter jogadores a fazerem contra-movimentos (um a pedir um passe no pé enquanto outro ataca o espaço) para provocarem a dúvida em quem defende. Para fomentar este tipo de afazeres contra um adversário a dificultar a vida com a sua forma de se fechar, Portugal não se ajudou a si próprio.

Ao intervalo, Martínez tirou Gonçalo Inácio, o defesa central que melhor passa a bola, constrói no início das jogadas e dá coisas diferentes nos primeiros passes, qualidades ainda mais valiosas face à quase omnipresença dos centrais portugueses para lá da linha do meio-campo quando a seleção atacava. Olhando para os seus mapas de calor, que mostram as zonas onde os jogadores mais andam no relvado, ele e Rúben Dias estiveram mais perto da área irlandesa do que da portuguesa. Ambos fizeram mais passes na metade atacante: em 45 minutos, o central canhoto do Sporting registou 33 passes para o último terço ofensivo e, em 97, o colega do Manchester City escalou aos 78.

Muito recuada a defender, dando a iniciativa a Portugal e vendo os dois centrais a jogarem tão longe da própria área, a Irlanda teve as dezenas de metros de espaço que pretendia ver nas costas dos defesas para aproveitar quando recuperava a bola.

JOSE SENA GOULAO

O selecionador também substituiu João Cancelo, único driblador nato que a seleção tinha nas alas ao apresentar-se coxa de largura já que, à esquerda, começaram o destro Dalot e João Félix, jamais um extremo e sempre atraído ao centro do campo na procura de tabelas e associações com alguém. “Nunca fomos eficientes na forma como atacámos”, radiografou Bernardo Silva, certeiro a ler as desavenças da seleção - “metemos sempre pouca gente em zonas de finalização”.

Olhando para o mapa de calor de Cristiano Ronaldo, o avançado de referência andou mais pela entrada da área do que no seu interior, para onde Portugal apontou os muitos cruzamentos. Quase nenhuma presença efetiva teve na área, absorto na luta com os defesas e demasiado sozinho a fazê-lo. Após ver o cartão vermelho por tentativa de agressão, aos 61’, sendo expulso pela primeira vez em jogos da seleção (13ª na carreira), Roberto Martínez não se pareceu importar muito com a meia-hora de inferioridade numérica a que o capitão condenou a seleção. “A razão por que recebe o vermelho é pela paixão e frustração quando Portugal não ganha, é isso que queremos de todos os jogadores”, disse o treinador. Cristiano não poderá jogar no Dragão, contra a Arménia, portanto Martínez dispensou-o da seleção. Veremos o que decide a UEFA quanto à suspensão - pode ir até às três partidas.

Pouco depois entraria Rafael Leão em campo para não resolver a questão de falta de presença na área, antes de Gonçalo Ramos, o único ponta de lança de origem entre os convocados que apenas foi lançado aos 76 minutos, ainda a tempo de acertar dois remates na baliza. 

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