No Benfica, derrubar um incumbente é obra rara — raríssima. A última vez que sucedeu, foi apenas porque o universo inteiro conspirou para que tal acontecesse. Ao contrário de 2020, Noronha já não é um estreante a entrar de peito aberto contra uma máquina velha, cínica e oleada. E, ao contrário de 2025, já viu tudo. Já levou com tudo. Já sabe onde estão as emboscadas, os golpes baixos, os falsos amigos, as cartas abertas e os crocodilos em lágrimas. As cicatrizes são o seu mapa
E se Noronha voltasse?
Não seria inaudito, pelo contrário seria bíblico. Desde o cerco de Josué a Jericó que se sabe que o mundo é dos teimosos, dos que continuam a marchar mesmo quando a escuridão avança contra eles; dos que dão sete voltas à muralha até ela, arriada, cair de uma vez. Não creem? Pois creiam: em 1099, só ao terceiro assalto é que Jerusalém cederia ao ímpeto de Godofredo de Bulhão; e Churchill passou metade da vida a perder, a cair, a arruinar-se, como aqueles heróis trágicos que só a Inglaterra poderia produzir, até que em 1940 a própria História o empurrou para o lugar onde sempre estivera destinado.
Há oito dias isto nem me passaria pela cabeça. Estava tudo demasiado escaldado. Mas oito dias bastam para mudar um homem — e incendiar uma cidade. Hoje o cenário já não me parece imponderável: é só uma questão de atitude. Explico. Não se trata do que se faz, mas de como se faz. Se João Noronha Lopes tiver aprendido com os erros, se tiver avaliado os inimigos que tem pela frente, então pode perfeitamente conseguir.
Um deles é, na verdade, um aliado precioso: poderemos sempre contar com a incompetência de Rui Costa; retirem-se da fórmula os artífices da comunicação para que tudo acabe em soma zero.
Esses sim, verdadeiros manipuladores de sortilégios, foram a fonte de toda a insídia.
Veja-se o embrulho exemplar que fizeram a Nuno Gomes: conseguiram acusar um homem de querer “mandar deportar para Angola” um amigo angolano! O absurdo é deliberado, porque o objectivo não era ser credível, era ser destrutivo. Toda a campanha foi assim. A comunicação social fez tudo o que pôde para que Noronha não fosse eleito. Se, em 2020, o ignoraram, em 2025 trataram de lhe limpar o sebo. Mesmo agora, depois das eleições, os comentadores que na televisão auguram futuros promissores a candidatos que tiveram 12% são os mesmos que forçam a autópsia a um cadáver que teve trinta e muitos.
A urgência em matá-lo politicamente só prova que ainda o temem. Sabem — como nós sabemos — que Noronha só não tem futuro se não quiser. Até o Record escreveu: “(...) não tem futuro.” Ora, eu digo exactamente o contrário: tem futuro. Quem passou o que ele passou, quem enfrentou a máquina trituradora da comunicação social e as suas metástases a ecoar na boca dos sócios, é um sobrevivente. Trata-se por isso de cicatrizes. É uma questão de armadura.
Eles sabem: o futebol de Noronha — que é o nosso futebol — não é o futebol deles. E se isso os põe em sentido, porque não há-de encher-nos a nós de esperança? É pura lógica.
Existiram erros, como é evidente. Foram erros de credulidade, de quem não sabia exactamente o monstro que enfrentava. Estamos a falar de uma pessoa que juntou à sua volta gente séria, que nunca teve um euro de dívida, um euro de impostos por pagar, uma sombra de suspeita sobre si e, mesmo assim, marcaram-no com um “Vale e Azevedo” na testa. Ora, para se cometer esta desonestidade, para se atribuir o número da besta a alguém, é preciso que o homem tenha de facto abalado o castelo de areia moral onde há décadas se agarram as mesmas mãos experimentadas. E que não hesitaram em cair-lhe em cima: o Gandarez, satélite da nebulosa Freeport, o Jaime Antunes navegante-da-lua pardacenta do dirigismo português, ou Fernando Tavares, cuja relação com as próprias convicções é, no mínimo, elástica, e agora veio pedir desculpas públicas pela infame carta aberta que assinou contra si.
João Noronha Lopes enfrentou essa fauna. E a fauna arreganhou-lhe os caninos.
Convém lembrar os mais incautos: no Benfica — esse clube sublime e neurótico — não reconduzir um presidente em funções quase nunca aconteceu. Sabem qual foi o último caso? Exacto; foi o tal. E toda a gente sabe o furacão de forças e milagres necessários para o derrubar. Hoje faz-se de conta que as suas manigâncias eram óbvias, mas não eram. Eu sei. Era vivo. Estava lá e vi; com estes olhos que a terra há-de comer: cultivava-se a ideia — e muitos ainda a cultivam — de que era preciso um certo tipo de “astúcia” para se ser dirigente desportivo. A famosa pinto-da-costização do futebol português. Aos olhos dos de então, Vale e Azevedo seria o antídoto benfiquista para o veneno portista: capaz de fazer frente ao sistema e, até quem sabe, roubar aqui e ali, se necessário fosse.
Além disso havia obra (ou pelo menos promessa de obra): fora ele que lançara o Seixal, que pusera a SAD em marcha, e que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por resgatar Rui Costa, o seu menino perdido. Só com o caso do Pallanuoto Viareggio Versilia é que a estrutura começaria a dar de si. Lembram-se? Uma equipa de pólo aquático feminino em Itália patrocinada pelo Benfica? Isso e os cheques do Poborsky, claro.
E mesmo assim, repito, a queda não foi simples. Foi preciso prometer Jardel. Foi preciso — quando a SIC apoiava Vale e Azevedo e numa altura em que um programa chamado Big Brother redefinia os lugares cimeiros das audiências — que a TVI alinhasse com Manuel Vilarinho. E foi preciso que um abraço do Rei Eusébio selasse a tempestade perfeita.
E é isso que importa perceber: no Benfica, derrubar um incumbente é obra rara — raríssima. A última vez que sucedeu, foi apenas porque o universo inteiro conspirou para que tal acontecesse. Ao contrário de 2020, Noronha já não é um estreante a entrar de peito aberto contra uma máquina velha, cínica e oleada. E, ao contrário de 2025, já viu tudo. Já levou com tudo. Já sabe onde estão as emboscadas, os golpes baixos, os falsos amigos, as cartas abertas e os crocodilos em lágrimas. As cicatrizes são o seu mapa.
Por isso, se Noronha Lopes voltar — quando voltar — não voltará tenrinho: voltará calejado, voltará perigoso. São sete voltas para a muralha cair; há muito frango para virar. E nisso, meus amigos, o especialista é ele.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.