"Vítima da injustiça que a banalização da vitória acarreta - e que também foi associada a Schumacher e à Ferrari durante o domínio na era anterior – Lewis não só não é 'Sir' como não tem ainda contrato para a próxima época", escreve, incrédulo, Pedro Boucherie Mendes
Neste domingo, Portugal ganhou outra entrada nobre na enciclopédia da Fórmula 1. Depois da primeira vitória de sempre de Ayrton Senna, no Estoril, em 1985, o inglês Lewis Hamilton tornou-se no piloto com mais vitórias de sempre no Algarve.
Cem por cento inglês, filho de pai negro e mãe branca, neto de emigrantes da Ilha da Granada, Hamilton tem vários recordes, o mais interessante dos quais ser o único piloto na história a ter vencido em todas as 13 épocas que está na modalidade. Estreou-se em 2007, num McLaren Mercedes e quase foi campeão, um feito que nem o seu passado glorioso nos karts e noutras fórmulas deixava antever, tamanha é a exigência diferente dos Fórmula 1, a que se deve somar a circunstância de o seu colega de equipa ser então Fernando Alonso, o mais competente e competitivo dos pilotos do pelotão. Os dois terminaram com o mesmo número de pontos, embora o campeão tenha sido Raikkonen num Ferrari.
No Algarve, Lewis, que deve o nome ao velocista Carl Lewis, ultrapassou finalmente Schumacher no número de vitórias e caminha depressa para igualar o alemão em número de Mundiais de pilotos. Hamilton foi campeão uma vez pela McLaren e cinco pela Mercedes e, no fim deste 2020, a probabilidade de não contabilizar o sétimo título é ínfima.
Hamilton tem o melhor carro, com o melhor motor e foi o melhor em Portimão. Não ganhou apenas a corrida, conseguiu partir do primeiro lugar da grelha e obteve a volta mais rápida, um domínio que as confusões com o público e a Covid durante o fim de semana no autódromo obscureceram.
Com 92 vitórias, 97 pole positions e 161 subidas ao pódio, tudo marcas a que ninguém chegou, o que falta a Hamilton? Certamente muita coisa que só ele saberá, mas também lhe falta ser feito cavaleiro do império, vulgo “Sir”. Por algum motivo, a rainha nunca o incluiu na lista final em nenhuma honors list, de que fazem parte outros pilotos como Jackie Stewart, Stirling Moss ou Jack Brabham. Destes, refira-se que nenhum tem o palmarés de Lewis e que Moss nunca foi sequer campeão do mundo. Outro desportista que já é “sir” é Andy Murray, um tenista que não é nem de perto nem de longe um dos melhores da história e que é mais novo do que Hamilton.
Lewis é muito provavelmente o maior desportista de sempre da Grã-Bretanha e nisto do “Sir” a carta racial não pode ser jogada, uma vez que o corredor Mo Farah, que também não é caucasiano, é “Sir”. Hamilton foi feito MBO (Member of the British Empire) em 2008, mas quatro jogadores de críquete conseguiram ser “Sir” vencendo apenas um mundial, pelo que o critério em falta para que o piloto não tenha lá chegado é inexistente.
A rainha pode tornar cavaleiro a qualquer altura, mas costuma ser por alturas do Natal que as honras maiores são concedidas a personalidades que atingiram a excelência nacional e internacional numa determinada atividade. Pode ser este ano, ou, quanto muito em 2021, quando Lewis vencer outra vez, como é muito provável, salvo imponderáveis. Os regulamentos da modalidade pouco ou nada se vão alterar, as equipas não podem porquanto evoluir os seus carros, pelo que é seguro que a Mercedes continuará o seu reinado indisputado.
Dan Istitene - Formula 1
Talvez a Rainha tome Hamilton como um pândego ou um mau exemplo para a juventude e a sociedade em geral? Não tem motivos para tal. O piloto é um empenhado ativista em favor da luta à discriminação racial e à opressão das minorias, está preocupado com o ambiente e promoveu uma organização que se destina a aumentar as oportunidades para jovens negros conseguirem chegar ao automobilismo. Será mau britânico? Também não. Inclusive é um dos ingleses que mais impostos paga anualmente. Renega as suas origens, envergonha-se de ser quem é? Também não. Conseguiu que o Mercedes de 2020, conhecido desde sempre como a flecha prateada (silver arrow) passasse a ser preto, num apoio explícito ao movimento black lives matter, com o propósito de promover conversas entre fãs e observadores da F1 sobre o racismo. Aliás, a influência e militância de Lewis levou a que o seu fato e o do colega Bottas, deixasse de ser branco, para passar a preto, apesar de poder causar muito mais calor e desconforto aos pilotos, o que aconteceria mesmo com Bottas num grande prémio.
Com 35 anos, é o melhor piloto em circuitos, o melhor em pistas de cidade, o melhor em tempo seco, o melhor à chuva e o melhor a conservar pneus, essa magia negra fundamental na Fórmula 1 contemporânea. Também é o melhor em qualificação e a extrair o máximo do carro e dos pneus numa volta só. Apesar de estar no top-3, talvez não seja o melhor nas partidas e talvez não seja o melhor a ultrapassar ou a proteger a posição, mas é, de longe, o mais competitivo, o que mais quer ganhar, o que mais aborrecido fica quando não vence e o mais motivado para ser o vencedor e o campeão. Com Hamilton em prova, ou seja sem que seja forçado a desistir por falha mecânica, é quase certo que terminará pelo menos numa das três primeiras posições e é muito provável que seja o primeiro a cruzar a meta.
Hamilton é o mais rápido e o mais consistente. Também é o piloto mais rico, o que mais ganha, e o desportista mais rico de sempre da célebre lista do jornal "Sunday Times", tendo ultrapassado David Beckham. O jornal estima que Hamilton valha 224 milhões de libras.
Desde a vigente era da Fórmula 1, conhecida com era dos híbridos, Hamilton só perdeu um Mundial para o colega Rosberg e muito por causa de desistências por motivos mecânicos ou problemas de motor, a que foi alheio. Ainda hoje, em vários grandes prémios que lidera com margem, procura saber junto da equipa se ainda consegue ir à volta mais rápida e noutros, em que a vitória parece em risco, conversa ou discute com o engenheiro a propósito da melhor estratégia para vencer.
Lewis foi o primeiro piloto negro na Fórmula 1 e ainda é o único num desporto de homens brancos e alguns asiáticos. Neste momento, Alexander Albon, filho de um inglês e de uma tailandesa, é o único a par de Lewis que não é caucasiano.
Para mim, que sigo Fórmula 1 de perto há décadas, desde Nikki Lauda, passando por Piquet, Senna, Prost, Alonso, Schumacher, e estive presente tanto na primeira vitória de Senna, como este domingo no Algarve, Hamilton é o melhor de sempre. É Pelé, o Jordan, o Federer.
Dan Istitene - Formula 1
Se me apanharem numa conversa dir-vos-ei que não é, nunca foi, nem nunca será o meu favorito, mas isso interessa pouco ou nada. Alvo de ataques racistas e provocações por ter rastas no cabelo, por gostar de hip hop, por ter tatuagens, usar brincos e ou joias vistosas, o solteiro e sem filhos Lewis Hamilton resguarda-se cada vez mais na chamada bolha, somando platitudes para o público no final das corridas, que o assobia apenas por ganhar muito. Interessado em moda e música, participou num tema de Christina Aguilera, mas a sua timidez levou-o a guardar segredo durante dois anos: é ele o misterioso XNDA que ouvimos em “Pipe”.
Ao contrário da unanimidade que há para com Tiger Woods, outro negro que reina numa modalidade de brancos, Hamilton não recolhe ainda o crédito a que teria direito. A Fórmula 1 é um desporto de elite, para homens brancos de meia idade, que só muito recentemente se abriu ao digital, às redes sociais e aos mais novos. As duas temporadas da série Netflix, “Drive to Survive”, apresentaram alguns pilotos e carros aos fãs mais novos, mas as principais equipas e pilotos, a começar e a acabar em Hamilton e na Mercedes, expuseram-se pouquíssimo, mais uma vez porque Lewis se retrai da exposição ao público porque estará saturado das reações adversas e racistas.
Hamilton venceu o grande prémio de Portugal de 2020 com a maior vantagem para o segundo, desde a China em 2016. A corrida começou mal para ele, os pneus demoraram a ganhar temperatura naquela chuva miudinha no asfalto novinho em folha e o seu colega de equipa passou-o no arranque. Mas a magia negra que o leva a perceber como ninguém o que os pneus davam, como, quando e durante quanto tempo, permitiram-lhe uma vitória folgadíssima e indisputável.
Vítima da injustiça que a banalização da vitória acarreta - e que também foi associada a Schumacher e à Ferrari durante o domínio na era anterior – Lewis não só não é “Sir” como não tem ainda contrato para a próxima época. Fala-se que a Mercedes o quer segurar a troco de 60 milhões de libras por ano. Veremos se chegará para o melhor de sempre.