Opinião

O “limite mental” de Abel Ferreira ou a Saúde Mental de um treinador

O “limite mental” de Abel Ferreira ou a Saúde Mental de um treinador

Ana Bispo Ramires

Psicóloga de desporto e performance

Os treinadores “padecem” do mesmo tipo de “sintomatologia” que pode ser observada em qualquer pessoa que, movimentando-se em contextos de elevado desempenho, partilham das mesmas características. São humanos — logo têm padrões cognitivos e emocionais que, quando ativados de forma disfuncional a curto ou médio prazo transformam-se em indicadores claros de ausência de saúde mental. E isso nada tem a ver com o resultado/sucesso alcançado, escreve Ana Bispo Ramires, psicóloga de Desporto e Performance, após ter ouvido as declarações de Abel Ferreira na conquista da sua segunda Taça dos Libertadores consecutiva

No momento em que se esperava um discurso entusiasta acerca de uma vitória histórica na 62.ª Taça dos Libertadores (a mesma vitória que garantiu a Portugal o quarto lugar no ranking dos países com mais vitórias em todas edições da prova), Abel Ferreira surgiu sereno, com sensação de dever cumprido e com a noção de que a intensidade com que se vive o futebol no Brasil “não traz saúde a ninguém”.

Razões à parte que justifiquem este discurso, que em boa verdade iremos desconhecer sempre, o facto é que as suas palavras vieram dar nota de um tema muito pouco aflorado em Portugal: a saúde mental do treinador.

De facto, se nos últimos anos a literatura sobre a saúde mental dos atletas ganhou um forte impulso graças ao interesse dos investigadores, onde o papel do treinador é muito frequentemente discutido enquanto mediador da qualidade dos indicadores de saúde mental dos atletas, na realidade o mesmo não se pode dizer sobre o interesse que a saúde mental do próprio treinador tem espoletado.

O que não deixa de ser algo curioso, na medida em que o treinador deve ser, claramente, (o ator principal e) o principal mediador de todo o processo desportivo que envolve a promoção das qualidades físicas e psicológicas do atleta.

O que tem revelado a Investigação Científica?

Uma leitura rápida sobre algumas das últimas investigações publicadas:

· A carga de trabalho excessiva, o confronto com a emoção de derrota pós-competitiva e um sentimento de isolamento foram identificados como os principais fatores de risco, com potencial de diminuir o bem-estar e perceção de saúde mental dos treinadores;

· Por oposição, uma cultura organizacional eficaz, assente em modelos de liderança transformacional e o acesso a apoio social de qualidade foram percebidos como os principais fatores de proteção que poderiam manter ou melhorar o seu bem-estar e saúde mental;

• Os treinadores são top performers como os seus atletas e devem preparar-se para garantir que podem ter o melhor desempenho possível, sendo a gestão da sua própria saúde mental e bem-estar é um componente importante para isso.

Poderíamos discutir estas e mais uma miríade de outras conclusões que na realidade podem ser sintetizadas em:

Os treinadores, “padecem” do mesmo tipo de “sintomatologia” que pode ser observada em qualquer Ser que, movimentando-se em contextos de elevado desempenho, partilham das mesmas características:

São Humanos – logo têm padrões cognitivos e emocionais que, quando ativados de forma disfuncional (que nada tem a ver com o resultado/sucesso alcançado!!!) a curto ou médio prazo transformam-se em indicadores claros de ausência de saúde mental.

Simplificando – qualquer pessoa que se predisponha a se expor de forma prolongada a um contexto de alta performance, sem o devido enquadramento organizacional e um sólido conjunto de competências psico-emocionais (o que é raro, na medida em que este tipo de “competências de vida” não tem suscitado interesse no contexto académico em geral), logo a especialização na área é difícil de ser encontrada), encontra-se de facto em risco de ver a sua Saúde Mental em défice.

O problema reside em que, tratando-se de uma “lesão não visível” (por comparação com as lesões físicas), tal como já referido em alguns artigos, por vezes é identificada demasiado tarde sendo que, no caso de um treinador (ou médico, ou psicólogo, ou fisioterapeuta ou professor – qualquer profissão com responsabilidades acrescidas pelo desenvolvimento de capacidades de terceiros), tal facto pode impactar na qualidade da saúde mental dos seus próprios atletas.

Soluções?

Algumas.

A iniciativa que decorreu na passada semana em Lisboa com a realização do Congresso Mundial de Treinadores (13.ª edição) organizado pelo ICCE (International Council for Coaching Excellence) e Confederação de Treinadores de Portugal traduziu-se num excelente ponto de partilha de melhores práticas entre mais de 850 participantes, onde houve inclusive espaço para colocar o tema da saúde mental do treinador como um dos pontos fulcrais de discussão.

A vontade de partilhar e conhecer as melhores práticas, os obstáculos e desafios entre pares é, por si só, uma alavanca importante para nos tornarmos mais resilientes e integrados no nosso grupo de pertença, daí a importância de todo o tipo de iniciativas que possam espelhar este tipo de oportunidades.

Mas não basta.

O desporto português, fruto da inexistência de apoios estatais de relevo (note-se que, Espanha, anunciou no rescaldo dos Jogos Olímpicos de Tóquio um apoio de 1000 milhões de euros para a preparação dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 – ver aqui) e de uma cultura empresarial que, de uma forma quase esmagadora, teima colar-se ao sucesso alheio ao invés de alavancar as gerações futuras que possam representar a marca de Portugal, encontra-se praticamente “moribundo” no que respeita à capacidade para subsidiar uma necessidade urgente de se re-inventar colocando no epicentro das suas preocupações os seus principais protagonistas: treinadores e atletas.

Falar de Saúde Mental não basta.

É preciso fazer sentir que a Saúde Mental é um dos principais pilares para o desempenho em contextos de alto rendimento (desportivos ou não) – e, naturalmente, ações claras e inequívocas são precisas para acentuar esta relevância.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: ana@anabisporamires.com