Partindo do exemplo recente de Jürgen Klopp, a psicóloga Ana Bispo Ramires escreve sobre os(as) treinadores(as), muitas vezes percecionados como sortudos por terem “empregos de sonho”, que sofrem de excesso de carga de trabalho, vivenciam de forma amplificada as perdas da sua equipa e estão frequentemente em risco de isolamento social. E a ansiedade crónica e até stress pós-traumático podem emergir da exposição a contextos de incerteza de forma prolongada, tão comuns a esta profissão
Numa era em que o grande foco parece ser a crise energética global, demasiadas vezes esquecemos de olhar para uma realidade tão próxima de nós – a exaustão energética que os próprios indivíduos vivenciam.
Também quando se fala em sustentabilidade, um tema sobeja e indiscutivelmente urgente, esquecemos de falar da “sustentabilidade” dos indivíduos... como se a realidade externa pudesse, em algum momento, ser devidamente cuidada (ou seja, de forma contínua e consolidada) por quem esgotou há muito os seus recursos (por vezes, sem sequer notar).
A decisão de Klopp – afastar-se da sua equipa no final da época – toma todos de surpresa por, à distância, ser impensável alguém escolher afastar-se de um qualquer “emprego de sonho” para o comum dos cidadãos... Surpresa esta que se amplifica quando a decisão é comunicada de forma serena, num discurso pautado por tristeza, mas garantindo, ao mesmo tempo, que “toma esta decisão enquanto ainda está bem” (poderíamos discutir esta avaliação, mas não o faremos neste artigo).
A decisão está tomada e, nas suas palavras, é irreversível por sentir não ter a energia necessária (nem imaginar como a repor provavelmente) para continuar a dar resposta às necessidades de uma equipa da dimensão do Liverpool.
O emprego de sonho de um treinador
Imagino que se adeque aqui abordarmos um pouco o tema dos “empregos de sonho”, pelo menos, naquela dimensão que é socialmente pouco comum falarmos, ou seja, na forma como nos pode consumir, canibalizar e esgotar verdadeiramente.
Diz o ditado “quem corre por gosto não cansa”, mas em boa verdade cansa... e muito – acontece que mascara para si próprio(a) qualquer sinal de fadiga por não se sentir “autorizado(a)” a queixar-se de um emprego de “sonho” face às dificuldades que imagina na vida de quem o(a) rodeia.
Mas falemos de Treinadores(as):
Dificilmente se queixam de problemas de motivação, colocam dias de “baixa”, fazem “pontes” ou férias alargadas.
Sujeitam-se a um escrutínio diário sobre as suas competências e as suas decisões que emerge através dos mais diferentes interlocutores – adeptos, atletas, dirigentes, comentadores e publico em geral. Estão sob avaliação contínua e, em alguns contextos, sempre com a iminente sensação de que qualquer desaire possa precipitar o despedimento.
E, ainda, também dificilmente estão presentes nas festas de aniversário de amigos, família... ou até da própria.
Difícil de imaginar, certo? Mas é um quotidiano comum para quem escolhe o “sonho” da alta competição.
E o que diz a literatura científica?
Para já, não muito porque o maior objeto de estudo (e recursos já agora) tendem a estar dirigidos para os atletas.
Ainda assim, os estudos desencadeados nos últimos anos (a partir de 2020) indicam que os(as) treinadores(as) sofrem de excesso de carga de trabalho, vivenciam de forma amplificada as perdas da sua equipa (assumindo-as claramente como suas... o que não se observa com tanta frequência noutras áreas da sociedade), centram os seus esforços na capacitação dos recursos das suas equipas ou na defesa das agressões (ora externas ora, de forma ainda mais tóxica, internas) de que as mesmas são alvo, encontrando-se frequentemente em risco de isolamento social o que pode contribuir contundentemente para a diminuição da sua perceção de bem-estar e dos indicadores de saúde mental.
Encontra-se igualmente fortemente documentado que os quadros de ansiedade crónica e até stress pós-traumático podem emergir da exposição a contextos de incerteza de forma prolongada – incerteza de resultados, incerteza de lesões, incerteza acerca do apoio (ou ausência dele) por parte dos dirigentes, incerteza de permanência num dado clube, incerteza acerca das suas próprias capacidades e/ou da resiliência da própria família para se adaptar a este “estilo de vida”.
Muitas... demasiadas incertezas que pautam uma linha ténue entre um sonho ou um pesadelo que muitos (falham ou) identificam tarde de mais.
As lições de Klopp
Klopp, até na despedida nos surpreende, evidenciando uma enorme profundidade de autoconhecimento, não só no reconhecimento os seus recursos internos (que agora considera insuficientes) mas também na antecipação do prejuízo que poderia trazer ao seu contexto se optasse por permanecer – desde sempre exaltou a importância da equipa e, em momento algum, seria capaz de se sobrepor às necessidades da mesma.
Serão certamente, as mais importantes lições com que nos poderia “brindar” (a cada um de nós, ao contexto desportivo e, em boa verdade, à Sociedade em geral) – a de que individuo algum deve 1) desrespeitar os seus limites, colocando em risco a sua saúde física e mental e 2) sobrepor-se ao rumo e missão de uma organização reconhecendo antecipadamente o seu momento de saída para dar lugar a quem possua mais recursos para o fazer.
Privilégio indiscutível podermos testemunhar exemplos desta dimensão!