Opinião

Cristiano Ronaldo e a ascensão do discurso meritocrático no futebol moderno

Pedro Almeida, investigador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)

A carreira de Ronaldo e a sua ascensão à condição de referência do futebol mundial, para além de ter aberto espaço à reprodução de narrativas meritocráticas, parece igualmente ter reforçado um certo individualismo. O fervor em torno de Cristiano Ronaldo reflete a valorização do sucesso e da glória individual, traços que, não sendo exclusivos do contexto nacional, são enaltecidos na cultura portuguesa

O caso de Cristiano Ronaldo é um exemplo paradigmático acerca do modo como os discursos meritocráticos têm vindo a ocupar uma posição cada vez mais hegemónica no seio das sociedades liberais ocidentais. Aqueles que defendem que a dedicação e perseverança são suficientes para ascender na hierarquia social encontram no percurso do futebolista português uma prova do seu argumento.

O desporto em geral, e o futebol em particular, estabelece-se como um espaço, por excelência, de produção de narrativas meritocráticas. De facto, são inúmeros os exemplos de futebolistas que conseguiram romper com as estruturas de poder e privilégio inerentes à própria natureza da sociedade capitalista. Daí que os adeptos da meritocracia, que ignoram ou desvalorizam as desigualdades estruturais que resultam da posição de classe, pertença étnico-racial, entre outras, encontrem no futebol um espaço privilegiado de disseminação das suas abordagens.

De forma pouco surpreendente, os grupos mais poderosos são aqueles que mais têm vindo a reforçar as leituras meritocráticas. Trata-se, portanto, de um discurso que atravessa todas as esferas sociais, desde a política à mediática, passando pela própria academia. Tendo em vista o modo como estes temas são problematizados a partir do contexto do futebol, o papel dos media, na condição de formador de opiniões, tem-se revelado igualmente determinante.

Apesar do futebol ser um desporto coletivo, a vertente individual parece, por vezes, sobrepor-se. Poder-se-á afirmar que sempre foi assim, que este fenómeno social tem produzido ‘grandes figuras’. No entanto, parece indiscutível que o progressivo aprofundamento dos processos de mercantilização e comercialização que marcaram o futebol das últimas três décadas também favoreceram um aumento exponencial de uma mentalidade competitiva e individualista. Neste sentido, a carreira de Ronaldo e a sua ascensão à condição de referência do futebol mundial, para além de ter aberto espaço à reprodução de narrativas meritocráticas, parece igualmente ter reforçado um certo individualismo.

O fervor em torno de Cristiano Ronaldo reflete a valorização do sucesso e da glória individual, traços que, não sendo exclusivos do contexto nacional, são enaltecidos na cultura portuguesa. Ronaldo é a figura pública mundial com mais presença nas redes sociais, com cerca de 613 milhões de seguidores. Numa sociedade que hipervaloriza a cultura de celebridade, esse dado não pode ser menosprezado.

Ao mesmo tempo que se transformou numa celebridade, os feitos alcançados na sua carreira futebolística elevaram-no à condição de ídolo nacional. O que também é interessante é que a sua ascensão coincidiu com uma nova era da seleção nacional, que se iniciou no Euro 2004. Essa era ultrapassa o campo meramente desportivo (com a presença contínua em fases finais dos Campeonatos Europeus e Mundiais). Com efeito, foi justamente a partir dessa altura que se assistiu ao surgimento de um novo tipo de aficionado: o adepto da seleção.

Trata-se um adepto(a) que, regra geral, não frequenta os estádios portugueses. Em muitos casos, apesar de ter uma preferência clubística, nem sequer segue as competições de clubes. Por outras palavras, e utilizando uma expressão que se ouve regularmente nos estádios, não tem ‘cultura de bancada’. Este novo fenómeno fez emergir novas formas de manifestações populares de carácter mais ou menos espontâneo. Evidentemente, não se pode dissociar o papel dos media, enquanto agente aglutinador da nação, deste novo fenómeno de massas.

Ao mesmo tempo a que se assistia a uma mudança sociológica dos adeptos que acompanhavam a seleção nacional, o fenómeno Cristiano Ronaldo começava a emergir. Esta ligação não é despiciente, já que estes novos seguidores da equipa nacional não têm tanto apego aos clubes, o que, no caso português, amplifica sentimentos de comoção e identificação coletiva. Além disso, uma parte significativa dos adeptos que se identificam mais com a seleção do que com os clubes é jovem, muitos deles já nascidos na era das redes sociais, nas quais se observa uma intensificação de uma imagem idealizada das celebridades.

Trata-se, assim, de um contexto altamente favorável para a glorificação de uma figura que teve tanto de extraordinário atleta como de popstar.

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