Os repiques à Benfica num debate de 4 horas com a mira dos ataques em Rui Costa e Noronha Lopes
Sport Lisboa e Benfica
Apenas pela terceira vez nos últimos 25 anos, os benfiquistas puderam ver um debate televisivo entre candidatos à presidência do clube. Se não cansativo, este foi exaustivo: durou mais de quatro anos, quis abordar oito temas e pôr fronteiras aos momentos de confronto. Tanto o quis fazer que teve de os extinguir para não furar ainda mais a madrugada. Para lá da reprodução de ideias e propostas que já se conheciam aos seis pretendentes nas inúmeras entrevistas das últimas semanas, o debate foi palco para sobretudo João Noronha Lopes e Rui Costa se atacarem
Mal se ouviu “repique” da boca do moderador para descrever o momento em que o debate, de facto, permitiria debater, a ocasião transmutou-se para uma espera contínua pela chegada do tal repique, e depois do outro, e do seguinte, e mais um. Finalmente, a noite de quinta-feira era para os seis candidatos à presidência do Benfica se olharem de frente, apenas o terceiro deste tipo em 25 anos de atos eleitorais no clube. Eram oito os temas a abordar, oito seriam as oportunidades para os candidatos terem um diálogo cordial, na melhor das hipóteses, ou, na pior, uma discussão férrea, acesa em farpas, ataques e bocas.
Feito balança a equilibrar esses dois pratos, o maratonista debate, prolongado prolongou por mais de quatro horas e que entrou na madrugada de sexta-feira, teve momentos de pacífico debitar das intenções dos pretendentes que já se conheciam e, com o tempo, quezilentas trocas de palavras entre os pretendentes ao trono da Luz. Quem mais teve de amparar golpes e olhar para todos os lados foram Rui Costa e João Noronha Lopes nos tais repiques.
O primeiro chegou à meia-hora. João Diogo Manteigas quis logo corrigir Noronha Lopes sem este se ter enganado, ao dizer que foi Bruno Lage a planear a atual época, como ele o dissera. Atacante sem ser delegante, Cristóvão Carvalho livrou-se de cerimónias. “Olho por exemplo aqui para o programa do Rui Costa. Ó Rui, é curto, em ambição é curto”, atacou para animar a coisa. E Rui Costa pôs os óculos na cara, ficou com olhos de ver para responder: “Espero que nunca nenhum de vocês queira ser, neste papel de presidente, treinador do Benfica.”
Noronha Lopes já se desfizera de subtilezas na ronda inaugural de intervenções, à vez, sem interrupções ou comentários desejados, referindo-se ao “candidato Rui Costa” com umas quantas críticas já ouvidas, lidas e batidas nas incontáveis entrevistas que deu nas últimas semanas, à semelhança dos restantes. A palavra de que todos usufruíram em cada um dos temas previstos (futebol, modalidades, finanças, formação, infraestruturas, futebol feminino, associativismo e centralização dos direitos televisivos) foi uma reciclagem do falatório que lhes ficou conhecido nas conversas incessantes com a Tribuna Expresso e os outros meios.
O repique, vindo do que é picado várias vezes, ou de bolas de bilhar a chocarem, diz o dicionário, era para finalmente se confrontarem.
Soundbytes e organogramas
Então Rui Costa quis dizer “ao candidato Noronha Lopes” que “nunca festejou, nem nunca assumiu que festejou, alguma coisa que não fosse um título do Benfica”, justificando-se que aprendeu “muito cedo que não há vitórias morais”, em resposta à acusação de ser um presidente do “quase”, um soundbyte, um de muitos, usado e abusado por Noronha durante a campanha. Luís Filipe Vieira resmungou algo impercetível em murmúrios enquanto Noronha Lopes falava, levou as mãos aos bolsos, virou-se para quase a admirar o vazio das bancadas do Estádio da Luz que tinham atrás.
Martim Mayer arrancou meigo, sem disparos de maior: “Ouço aqui muitos conceitos, um conjunto de ideias, poucas propostas concretas, que não se materializam num caminho concreto.” Enfim seis homens deixavam de ser ilhas com um microfone a fazer de palmeira, cada um podendo dizer tudo sobre um dos outros sem a possibilidade de um contrário dizer algo em troca.
Tinham começado uns sentados, outros em pé. O esqueleto despido da Luz atrás deles, um recinto vazio, as luzes acesas sobre as bancadas da cor que pintava as gravatas dos cinco, não dos seis.
Culpa de um, ou dos botões abertos da camisa de um, a de Cristóvão Carvalho, quem optou por deixar o vermelho a espreitar do bolso do blazer, diferente no pormenor como Rui Costa, único a preferir o casaco aberto. O visual conta. E o do presidente e de Mayer lá acabaria por se agitar para colocar o de Noronha a esbracejar quando se atropelaram e viraram contra ele, falando uns por cima dos outros assim que o debate chegou ao apeadeiro dos cargos e das pessoas a ocupá-los caso eles ganhem as eleições. “O vice-presidente para o futebol é a SAD (...) isso é eleitoralista, ponto final”, ouvia-se de Martim. “Explique-lá o que é um vice-presidente para o futebol”, desafiava Rui. “Está aqui um ex-presidente, pergunte-lhe”, acrescentava, ao apontar para quem testava a fofura do assento e reclinava-se para trás.
Vieira esperava pela sua vez, bem-comportado, indiferente ao ligeiro chinfrim.
“O vice-presidente para o futebol vai ter a supervisão de todo o futebol do Benfica, definição de estratégia a médio e longo-prazo. O diretor-geral coordena o futebol, tem debaixo de si a formação, o scouting, o futebol feminino. As funções estão completamente definidas e as pessoas não caem de pára-quedas, Rui, já estão a falar há muito tempo”, explicou-se Noronha Lopes, exaltado na sua defesa perante o incumbente que não põe em causa as pessoas, mas “a experiência que indica que eles têm para ocupar estes cargos”. Eles, Nuno Gomes e Pedro Ferreira.
Quando o cicerone devolveu a ordem e deu a vez a João Diogo Manteigas, o candidato com muitas horas de comentariado na televisão quis ser o graúdo da ocasião: “Peço-vos elevação, deixem os outros falar também.” Depois, visando Rui Costa, disse que António Silva ainda não renovou o seu contrato, mas Nicolás Otamendi sim, para deixar o presidente a justificar-se antes de concluir, gizando o argumento na idade dos jogadores - “é exatamente por causa disto que precisamos de uma rutura total com o passado.” Martim Mayer retornaria a Noronha, criticando o “emaranhado de pessoas” na sua estrutura em que “vai ser muito difícil definir responsabilidade e cadeias de decisão”. O visado sorria com os lábios.
“Isto é o repique, não é?”, já perguntara pouco antes, no meio de faíscas entre os vizinhos. “Não é com muita gente que ganhamos campeonatos, isto é muita teoria, na prática é completamente diferente, tem que se estar lá sempre metido, 24 horas se for preciso. Não é como estão aqui a dizer, fazer organogramas muito bonitos e nada funciona. E há pessoas que não tem a mínima preparação para os lugares que querem ocupar”, defendeu quem presidiu ao Benfica. Quem a ele hoje preside anuía: “Exatamente.” E quem o precedeu durante quase 18 anos escusou-se a atacar quem fosse: “Em Portugal temos muito boa gente para estar no futebol, somos se calhar a indústria com mais visibilidade no mundo, é sinal de que temos cá grandes profissionais.”
Faltava Cristóvão Carvalho, outro que quis flanquear Noronha Lopes pelo lado de Nuno Gomes ser o seu escolhido para vice-presidente com a pasta do futebol. “Ninguém entende. Na realidade, se ganhar as eleições, Nuno Gomes vai passar mais tempo no Seixal do que na qualidade de vice-presidente. Só estruturou o futebol com pessoas, tudo a dialogar e a conversar. Entre jogos, são tantas que não vão conseguir chegar a uma decisão. Há um excesso de pessoas.”
E teve Noronha, feito o alvo de quase todas as miras, de responder, por fim desfazendo o sorriso com que acolhera tudo. “Sabe o que acho que faz confusão a muita gente? Que haja organização e planificação, com pessoas sem agendas próprias. É isso que trago para o Benfica e vão ter que se habituar, é com esta que vamos ganhar”, luziu com orgulho na voz para Mayer não atenuar o ataque - “o Benfica só precisa de um diretor-geral” - e de Manteigas completar que “ninguém vai fazer uma purga” em quem já trabalha no clube, pois “há gente muito capaz e responsável” no Benfica.
Foi ele o primeiro a alfinetar Vieira por o ouvir a falar no seu passado, lembrando que “foram sete campeonatos em 18 anos”. O mais velho no púlpito, chegado o debate à sua voz, diria que “o candidato Manteigas é muito novo ainda, não soube o que foram os meus primeiros 10 anos no Benfica para recuperar um clube falido”.
João Diogo Manteigas, advogado e candidato à presidência do Sport Lisboa Benfica.
Os repiques pré-definidos começaram, aos poucos, a serem obsoletados por ataques durante as supostas intervenções imunes a interrupções. Entrado o debate no futebol de formação, Cristóvão Carvalho abriu o tema a alongar-se acerca do Seixal, das obras, do “menino que tem de olhar” para a equipa principal e “sonhar” para chegar ao “Rui” e dizer que “não perdoa” a venda de João Neves. “E amarramos os jogadores aqui?”, soltou logo o presidente, antes de usar o seu tempo sobre o tema para, de forma rápida, depositar alguns números do seu mandato e, alongando-se mais, lhe responder: “Um dia que seja presidente do Benfica vai-se aperceber que as coisas não funcionam dessa maneira.” No repique a sério, o único desgravatado não largaria o intento, “Rui, o João Neves é a tua pedra no sapato”.
Quis Martim Mayer ir pelo concreto, falar em propostas. Foi às contratações para exibir o muito que se gasta e funciona como obstáculo à entrada dos jovens na equipa principal. “Compramos demais e tapamos jogadores da formação.” Para o resolver, acertou com o seu diretor-desportivo - “já combinei com ele” - que “50% da equipa A será da formação, e como titular”. No vaivém de pequenos temas dentro do tema-pai, Noronha Lopes foi a João Neves para reavivar a crítica a Rui Costa. “Quando a formação foi chamada a salvar o Benfica, fomos campeões em 2019 com o Bruno Lage, já ninguém se lembra nem fala disto”, enlaçou Manteigas com vontade de encerrar o tema, ao lamentar a estratégia de “formar para vender” que é “fomentada em Portugal” contra a qual o clube “vai ter de lutar um bocadinho”.
O neto de Borges Coutinho, com parte da fama ligada à do outrora presidente, achou que “isto” de “falar sobre o passado” acrescenta “pouco aos sócios”, lembrando que não estavam ali num “programa de comentário desportivo”. Martim Mayer queria apontar à criação de um colégio e residência para as famílias no Seixal para “atrair o talento”. Noronha Lopes quis golpear o “discurso fatalista” de o Benfica não ter como contrariar o assédio de tubarões europeus aos jovens da casa por estar “farto da conversa de não podermos cortar as pernas aos jogadores”, virando-se para Rui Costa ao dizê-lo. Para todos viraria João Diogo Manteigas uma promessa, ao exibir duas licras, de que o Benfica terá uma equipa de ciclismo “com patrocinador” no próximo ano, “seja qual for o vencedor” das eleições.
A repique, no seu repique, já o zumbido de motorizadas a acelerar longe na 2.ª Circular rareava com o avançar da noite, Cristóvão Carvalho surpreendeu-se: “Ó meu caro João Diogo, esta tua manobra do ciclismo surpreendeu-me, claramente emocional, era tudo o que não tinhas no teu programa. Lembraste-te agora do ciclismo. Sou benfiquista pelo ciclismo, gostava que me explicasses como se ganha porque custa muitos milhões de euros.” Também se ‘atirou’ a Noronha Lopes ao interpretar uma entrevista do concorrente, dizendo que leu o seu programa e criticando: “Não tem compromisso.” Manteigas retorquiu assim que pôde, ofertando a licra, entalada na página respetiva do seu programa, com um toque de deselegância a acompanhar: “Mas acho que não lhe serve.”
O futebol feminino poucos atritos despertou, as modalidades tão pouco, mas quase todos os candidatos que não Rui Costa vincaram o desconhecimento, por arrasto a opacidade, face ao quanto o clube gasta nelas, em concreto.
Quando a tertúlia entrou nas finanças, as boas-vindas couberam a Vieira. “Não sou grande técnico financeiro, mas, até agora, tenho levado a água ao meu moinho e tem batido certo. Pode haver lá gorduras a mais e um gajo tem de eliminá-las, mas só lá dentro é que se pode trabalhar nisso a sério. Até lá, é especular”, introduziu antes de Mayer discursar sobre a filosofia japonesa inventada pela Toyota que deseja aplicar no Benfica, Noronha Lopes criticar “os quatro diretores financeiros” nos quatro anos prévios e Luís Filipe, quase professoral, abdicar do discurso bélico da campanha e respeitosamente explicar ao seu sucessor na presidência como não foi possível, como ele disse, o passivo aumentar durante a pandemia.
Faltou Mayer espingardar contra “as fórmulas” de quase todos e criticar a falta de soluções geral. “Tem de se falar em medidas concretas”, apelou. “Está a criticar uma coisa, mas faz igual. O seu programa também não diz nada”, disparou depois, rumo a Noronha. Ambos discutiram com brevidade, vozes levantaram-se. “Não é por gritares muito alto que tens as soluções”, estampou Carvalho para serenar a amostra de salganhada por entre o debitar de coisas que estão nos programas eleitorais. Muito do debate limitou-se a isso e à réplica do que já os seis tinham repetido em variadas entrevistas. Outra faísca se viu na “estima” que Rui Costa recusou de Noronha Lopes - “após ter andado a dizer mal de mim nos últimos três meses.”
As brasas do debate perderam incandescência na centralização dos direitos televisivos, aí as antenas estão sintonizadas, todos empunham a supremacia do Benfica em qualquer discussão nacional do tema, preconizam a predominância no clube sobre o processo, os restantes clubes, a negociação, até sobre a lei. Noronha não desperdiçou a ocasião para acusar Rui Costa de “falta de coerência” a liderar a postura encarnada, Vieira ironizou - “devo ter ouvido mal” - ao comentar os €400 milhões que Cristóvão Carvalho crê ser o valor do campeonato português. Manteigas garantiu uma assoalhada para o realismo nesta discussão, assinalando que os direitos televisivos têm perdido valor nas ligas maiores à exceção da Premier League.
Candidato à presidência do Sport Lisboa e Benfica.
Já o relaxado Luís Filipe Vieira soltara a trela à contenção, deixando escapar um palavrão como ponto final de uma frase, quando a conversa foi às infraestruturas, como quem diz ao Estádio da Luz, ao Seixal e a planos megalómanos, uns mais e outros menos, para os insuflar. De novo, foi mimetismo do que têm nos seus programas e disseram nas entrevistas.
Houve repetição dos embates de palavreado entre Rui Costa e Noronha Lopes, eles sempre com um ringue particular e o sino a tocar de vez em quando para novos rounds, com uma ou outra aparição mais jovial de Vieira - sobre as Casa do Benfica, gabou-se de ter a sua fotografia pendurada nas paredes, ao longo dos anos, para alegar algo de que Rui Costa não granjeou. As relações externas acicatariam a animosidade de serviço. “Sou sempre o visado de Noronha Lopes, por isso dou um exemplo flagrante: Um dos principais apoiantes de Pedro Proença na FPF foi o seu vice-presidente Nuno Gomes. Pergunte-lhe o que é que ele pensa”, disse o vencedor do sufrágio de há quatro anos quando os convivas se focavam em Pedro Proença e nas relações com os outros grandes.
Foi uma constate esse repique no seio dos vários que houve até às intervenções finais. O relógio bocejava perto das 1h30 quando vieram as despedidas e mais do ler, há que ver. Aprontado com os seus soundbytes, João Noronha Lopes predispôs-se a ir contra o incumbente, mas os restantes uniram-se para o cerca uma quantas vezes. Rui Costa eriçou-se com ele, foi quem mais falou (para se defender), sendo entre o diplomático e o paciente com os restantes. Luís Filipe Vieira não levou para a Luz as exaltações que mostrara nas entrevistas televisivas.
A uma hora do final do debate o moderador, zeloso de regras e tempos, declarava o fim dos repiques. Não queria chatear em demasia a madrugada, coitada. Os seis cronómetros deixariam de reservar minutos para as discussões, o resto da ocasião seria para monólogos a sucederem-se. Os menos badalados na praça, Cristóvão Carvalho e Martim Mayer, terão feito por engordar o ecos que os seus nomes farão na cabeça dos benfiquistas pela postura explicativa, também mais concreta, com que tentaram detalhar as suas propostas.
João Diogo Manteigas manteve ao longo das quatro horas a atitude de querer estar acima de zangas: foi o mais contido, procurou emanar a preocupação em vigiar o interesse que o debate tinha para os benfiquistas. Quis ser quase um provedor da utilidade do serão, guardador da barca que retornará ao Estádio da Luz, no sábado, para as eleições. Esta antecâmara foi longa, se não cansativa com certeza exaustiva (o debate de há quatro anos teve 1h30 de duração), pelo formato a querer delimitar fronteiras aos choques de retórica acabou por perder a mão sobre eles, tendo que os 'matar', às tantas. Se o debate era para aferir como se defendem e atacam os pretendentes, pôs mais em ação Rui Costa e João Noronha Lopes.