Ciclismo

Que futuro para a Volta a Portugal, o fenómeno mediático e popular com um pelotão encolhido em quantidade e qualidade?

Que futuro para a Volta a Portugal, o fenómeno mediático e popular com um pelotão encolhido em quantidade e qualidade?
TIAGO PETINGA

Uma nova liderança na federação e o aproximar do fim do contrato de concessão com a Podium foram o pretexto para o pelotão interrogar-se quanto às melhores soluções para a Grandíssima. Responsáveis pelas equipas concordam que falta qualidade, mas é preciso "arrumar a casa" antes de subir o patamar competitivo. Iúri Leitão aponta "erros" à organização e avisa que atrair muito protagonismo estrangeiro pode "matar" o ciclismo nacional

Que futuro para a Volta a Portugal, o fenómeno mediático e popular com um pelotão encolhido em quantidade e qualidade?

Pedro Barata

Jornalista

Está abafado perto de uma focacceria no Restelo. Há turistas que fazem fila à espera de mesa, dividindo o espaço com vários camiões de equipas da Volta a Portugal. É o último dia da corrida, o cansaço sente-se, quem não tem objetivos individuais a cumprir no derradeiro contrarrelógio relaxa. Ciclistas sentam-se à sombra em cadeiras de campismo. Outros vão, relaxadamente, reconhecer o percurso da etapa junto ao Tejo.

André Cardoso, rei da montanha em 2007 que disputou sete grandes voltas entre 2012 e 2016, cumpre com zelo as funções de responsável logístico do autocarro da Rádio Popular-Paredes-Boavista. Auxiliares de diversas equipas passam com caixas de pizza, mimo que frequentemente se dá a quem conclui uma prova por etapas.

Descendo a rua, um pai fala ao telefone ladeado por dois filhos. "Já vamos regressar, viemos só aqui ver a Volta e voltamos", diz o progenitor, possivelmente a falar com uma mãe que os aguardava para almoçar. O contrarrelógio que começava e acabava em frente ao Mosteiro dos Jerónimos estava a mais de uma hora de principiar, aquela família não veria qualquer ação competitiva. Os miúdos também não idolatravam um corredor em específico, apontavam para os autocarros dizendo "olha ali aquela equipa", não singularizavam nomes ou protagonistas.

Não obstante, os olhos das crianças arregalavam ao verem as bicicletas, ao testemunharem as cores, o aparato, a magia do objeto que para uns é brinquedo, para outros é meio de transporte, ali é ferramenta de trabalho. Por muito que não conhecessem a Feirense-Beeceler ou a Aviludo-Louletano-Loulé, apesar de não se distinguir Afonso Silva de Pedro Silva, há algo que toca no coração daqueles meninos que leva o pai a escolher aquele como programa de tarde de domingo.

Será o encanto da Volta, esse conceito indeterminado que se foi construindo ao longo de 86 edições. "A nossa equipa valoriza muito esta corrida porque é uma organização muito grande, um espetáculo, as pessoas aderem muito à Volta. Não há freguesia por onde passemos que não esteja cheia de gente", diz, à Tribuna Expresso, Iúri Leitão, campeão olímpico na pista e ciclista da Caja Rural-Seguros RGA, única equipa Profissional Continental (o segundo escalão) presente na Volta a Portugal, que é uma corrida da terceira divisão da modalidade.

Iúri Leitão à conversa com Artem Nych
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Iúri é um dos que procura a sombra antes do contrarrelógio. Está com gripe, mazela que o fez abandonar a competição após a 7.ª tirada. Era o nome mais conhecido e reconhecido por parte do grande público no pelotão, prestígio que também se nota nos arredores da Praça do Império. Os ciclistas andam tranquilamente por entre os turistas que olham para o telefone à procura da Torre de Belém ou dos pastéis, mas Leitão é parado para fotografias e autógrafos.

Menos quantidade, menor qualidade

Em 2017, a Federação Portuguesa de Ciclismo, então liderada por Delmino Pereira, assinou um contrato de concessão da organização da maior corrida nacional com a Podium. O acordo era válido até ao final de 2025, mas a prova de 2020, chamada edição especial e organizada diretamente pela federação, fez o relógio atrasar um ano. Desta forma, o vínculo com a Podium concluir-se-á em 2026, vigorando ainda para a 87.ª Volta a Portugal, a disputar dentro de 12 meses.

Aquando da firma do vículo, há oito anos, estabeleceu-se o objetivo de "de atrair equipas e corredores melhores”. Não obstante, 2025 soou a ponto qualitativamente mais baixo de que há memória no pelotão da Volta.

Sem nenhuma equipa do World Tour presente desde a Movistar, em 2021, o número de formações da categoria de prata reduziu consideravalmente. Nas últimas três edições houve, sempre, quatro equipas do patamar Continental Profissional, quantidade que em 2021 era de seis e, em 2020, de cinco.

Mesmo em frente à tal focacceria está Hernâni Broco, diretor-desportivo da Credibom/ LA Alumínios/Marcos Car. Tranquilo pela experiência dada por muitas Voltas como corredor — foi três vezes quinto classificado e venceu na Senhora da Graça, em 2011 —, reconhece que este ano "houve défice de equipas". Somente 111 participantes partiram da Maia, chegando 95 a Lisboa.

O minguar do elenco da Grandíssima tem sido progressivo, mas constante. Em 2000, eram 178 homens, que passaram para 145 em 2005. Em 2010, o pelotão era constituído por 141 elementos, caindo para 137 em 2015. Em 2019, eram 131. Em 2023, foram 125, em 2024 reduziu-se para 119, chegando-se a estes 111.

Rúben Pereira, patrão da Anicolor/Tien 21, está na crista da onda, vindo de duas vitórias seguidas com Artem Nych. Em 2025, a sua equipa ganhou duas etapas, andou oito dias de amarelo e fez primeiro (Nych), segundo (Alexis Guerin) e sexto (Pedro Silva) na geral.

A caravana da Anicolor está perto da entrada do Museu da Marinha, apresentando-se como a mais animada e colorida. As vitórias atraem boa disposição. Rúben Pereira, com o sorriso de quem sabe que, dentro de pouco, levará a amarela para a sala de troféus, alinha na opinião de Broco, indicando que "ter 18, 19 ou 20 equipas seria um bom número". Em 2025, houve 16.

Mais crítico do que qualquer um dos seus companheiros de ofício, José Azevedo alinha no diagnóstico, porque "quanto maior for o pelotão, mais competitiva será a competição e a grandeza do evento será maior", diz.

No passado recente, a Euskaltel, a Kern Pharma e a Burgos costumavam fazer companhia à Caja Rural no contingente de equipas espanholas da segunda divisão que vinham a Portugal. Eram formações que "se apresentavam muito competitivas e animavam a corrida", salienta Rúben Pereira, mas as circunstâncias parecem afastar esses conjuntos — os espanhóis e os Profissionais Continentais no geral — da Grandíssima.

Hernâni Broco deteta dois motivos para esta dificuldade: os pontos UCI e o calendário. Os pontos são fundamentais para certas equipas, porque ditam quem sobe ou desce de escalão, o que é decisivo para ir a corridas melhores, ter mais exposição mediática e atrair patrocínios de outra envergadura financeira. Ora, triunfar na geral individual deu a Artem Nych 125 pontos UCI, obtidos após 11 dias de esforço. Por comparação, a Polynormande, uma corrida de um dia em França que decorreu no mesmo domingo em que acabou a Volta, levou o vencedor a amealhar os mesmos 125 pontos.

Adicionalmente, a proximidade com a Vuelta, que parte seis dias depois de terminada a corrida portuguesa, é outro entrave elencado por Broco. Sem muitos pontos a distribuir e num agosto cheio de acontecimentos na velocipedia internacional (Volta a Polónia, Volta à Chéquia, Burgos...), o fator financeiro poderia ser um chamariz.

Mas não é. A organização distribui, no total, €120 mil em prémios monetários. Ganhar a Volta dá €15.101, triunfar numa etapa proporciona €2.800 a mais na conta bancária. Levar a camisola da montanha ou ser o melhor português na geral individual pressupõe um ingresso de €1500. Valores que não ficam perto do que uma equipa do centro da Europa gasta em vir para esta ponta do continente competir, deslocando toda uma caravana de corredores, material e staff, durante quase duas semanas.

O pelotão encolhe em quantidade e quantidade, mas a Volta mantém uma invulgar posição enquanto evento social, mediático, televisivo. Chegar à Praça do Império é ver algumas das maiores marcas nacionais a gastarem dinheiro para estarem no evento, é testemunhar um grande aparato televisivo.

A Petrolike é uma pequena equipa mexicana que terminou a Volta somente com três corredores ainda em prova. Ainda assim, foi suficiente para ganharem na Torre com Jonathan Caicedo e para fazerem um sétimo lugar na geral final, com Edgar David Cadeña.

Os simpáticos responsáveis da Petrolike estão sentados num passeio do Restelo, estrategicamente posicionados atrás de uma ventoinha. Os vizinhos de pelotão preferem pizzas para o fim de festas, eles foram buscar hambúrgueres. Não são muitos, porque a comitiva já vai reduzida, aguardando atrás de uma furgoneta que passa música sul-americana. Comentam que "praticamente em mais nenhuma corrida" que fazem se nota "este aparato".

"É de nível World Tour", salientam

Muitas provas de bicicleta por esse mundo fora batalham por terem uma transmissão por cabo ou até em streaming. A Grandíssima, com um pelotão que, mesmo para os padrões da terceira divisão, é fraco, tem várias horas diárias em sinal aberto.

"A Volta continua a ser um grande espetáculo desportivo", admite José Azevedo, que realça "o prestígio", a capacidade para "atrair a atenção das pessoas", a força do "mediatismo e publicidade que a televisão dá". Só que, de seguida, o líder da Efapel Cycling constata o paradoxo: "Apesar de ter esse nome e essa dimensão, se olharmos ao pelotão da Volta, não foi tão forte como em anos anteriores. Para o evento e para o ciclismo, seria melhor que a Volta conseguisse ter um pelotão mais forte."

O delicado equilíbrio entre qualidade desportiva e protagonismo nacional

Na ronda de eleições que ditou uma mudança de protagonistas nas federações desportivas, o ciclismo ficou entregue a uma das suas maiores referências das últimas décadas. Cândido Barbosa, o foguete da Rebordosa, triunfador em 25 etapas da Volta, sucedeu a Delmino Pereira.

Em declarações ao longo das etapas, o líder federativo colocou o dedo na ferida, assumindo que a Volta perdeu "importância" nos "últimos 15 anos" no lado competitivo. "A parte desportiva ficou para trás. É preciso recuperá-la, seja com quem for", atirou em entrevista ao "OJogo", parecendo abrir a porta a um futuro sem a Podium.

Para Cândido, esse alavancar "também passa por uma subida de escalão", a qual " não se pode pedir" quando "temos um pelotão de 110 ciclistas". "Quando tivermos legitimidade para pedir a subida, iremos fazê-lo. Mas, primeiro, é preciso reestruturar o evento do ponto de vista desportivo", resume.

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Rúben Pereira tem um discurso em tudo semelhante ao de Cândido. Diz que é preciso "organizar a casa", para, depois, ir à procura de tornar a Volta um acontecimento da segunda divisão, mas "de forma sustentada", para que a competição "não seja só de consumo nacional".

Pensar em trazer figuras mais sonantes leva, inevitavelmente, a pensar no paradigma da Volta ao Algarve. Com condições perfeitas para atrair estrelas — início do ano, bom tempo, um bom número de etapas sem ser excessivo —, a algarvia tornou-se ao longo dos anos um palco de desfile de Armstrong, Contador, Evenepoel, Pogačar ou Vingegaard, mas sem espaço para locais levantarem os braços em glória.

Há 41 etapas consecutivas que um português não ganha na Volta ao Algarve. A última vez foi Amaro Antunes, no Malhão, em 2017. Devido aos casos de doping a envolverem o algarvio e a W52-FC Porto, esse êxito, oficialmente, não conta. Antes disso, temos de recuar até 2006 — João Cabreira, também no Malhão — para termos um português a ganhar a sul.

Iúri Leitão acha "importante" haver um "bom nível desportivo, mas é prudente: "Se começarmos a subir e chegar ao nível da Volta ao Algarve, em que há equipas World Tour a controlar etapas e dizimar a corrida, o ciclismo português tem tudo para morrer."

Do alto do estatuto que um ouro e uma prata olímpicas conferem, Leitão vai-se assumindo com voz da consciência do pelotão. Alerta para uma Volta que, na opinião do vianense, "não foi totalmente bem pensada ou organizada". Critica o perfil das etapas, excessivamente duras e com poucos finais ao sprint, mas também considera que houve "erros" na gestão que a "organização e os comissários" realizaram.

Desde logo, Leitão acha que houve "punições demasiado levianas para as agressões" que se verificaram nas etapas com conclusão em Fafe e Santarém. No primeiro caso, quatro corredores foram multados em cerca de €531 e com a perda de 25 pontos no ranking UCI. Na segunda situação, dois homens foram multados em cerca de €212 e com a subtração de 20 pontos na hierarquia da União Ciclista Internacional.

Adicionalmente, Iúri não concordou com as opções tomadas na etapa que chegou à Senhora da Graça, quando a corrida foi neutralizada durante bastante tempo devido aos incêndios. "Já se sabia antes da etapa que estava a arder e que estava a arder ali", constanta o especialista na pista, que aponta mais dois erros. Por um lado, ter de andar atrás do comissário durante largos quilómetros, "tendo de inalar cinzas e fumo", por outro, ter-se subtraído mais de um minuto de vantagem aos escapados quando a corrida retomou. Comentando esse erro, Joaquim Gomes, diretor da Volta, não o considerou grave, porque "os comissários tinham desculpa" devido ao "contexto" em que se encontravam, sob "tensão".

TIAGO PETINGA

Em 2002, a equipa sediada na Maia, a última nacional a andar nas grandes voltas, tinha um orçamento de cerca de €1,75 milhões, revelou Manuel Zeferino, responsável daquele projeto, à "Antena 1". Mais de 20 anos depois, esse valor daria para cobrir os custos somados de boa parte do pelotão nacional.

José Azevedo, na toada crítica, entende que o ciclismo português "está a passar um momento difícil" e que tem de ser "repensado." Rúben Pereira concede que "há uma carência de referências" na modalidade, em parte porque os grandes destaques (João Almeida, os gémeos Oliveira, António Morgado, Rui Costa, Nélson Oliveira...) estão no estrangeiro.

Para Hernâni Broco, as equipas devem "seguir o exemplo do Afonso Eulálio". Em 2024, o figueirense, então com 22 anos, brilhou na Volta e ganhou um bilhete para o World Tour. "Formar e cuidar do talento deve ser a nossa prioridade", indica quem levou à Grandíssima um grupo maioritariamente composto por sub-25 (João Medeiros, Diogo Narciso, Duarte Domingues e Diogo Pinto) e em que o segundo mais velho, Emanuel Duarte, de 28 anos, foi oitavo classificado na geral final. Hugo Nunes, o mais velho, que cumprirará 29 em novembro, ganhou em Bragança no único triunfo nacional numa etapa em linha e levou a classificação da montanha.

O ciclismo português parece com vontade de se sentar no divã. Há nova liderança na federação, a identidade de organização da Volta pós-2026 é uma incógnita, parecem soprar ventos de mudança. As autárquicas vindouras definirão o panorâma das Câmaras Municipais, investidoras primordiais nas localizações de chegadas e partidas, para os próximos quatro anos. Há quem lance suspeitas e quem olhe com mais otimismo.

Minutos depois da chamada telefónica, o pai e os dois filhos dão meia-volta e retornam de onde vieram. O destino, provavelmente, será a mãe que ligava e o almoço que aguarda. Um dos meninos leva dois bidões oferecidos na mão, outro carrega um chapéu de ciclista, ambos têm uma certa magia na face. Estará ali inscrito o grande tesouro que a Volta a Portugal tem de guardar, um feitiço difícil de quantificar, mas que sustenta este fenómeno carregado de paradoxos.

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