No mundo onde “não há Maradonas” que está “mais corrosivo”, a arbitragem explicou por que erra e falou dos só 3% de decisões erradas no VAR
MIGUEL A. LOPES
Na primeira vez esta época em que quem lidera os árbitros na FPF se apresentou a explicar as decisões, as estatísticas e a estratégia aos jornalistas, Luciano Gonçalves, presidente do Conselho de Arbitragem, e Duarte Gomes, diretor técnico, revelaram que houve 40 intervenções do VAR na I Liga e, no conjunto das quatro provas com a tecnologia, 97% das decisões foram acertadas. “Obviamente, muitas vezes do que se fala é dos outros 3%, da sua consequência, do seu impacto e da sua visibilidade.”
Finda uma semana farta em polémicas com árbitros, um arraial de dedos a serem-lhes apontados, diz-que-disses constantes entre clubes e em guerras de comunicados, quase pareceu de propósito a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) marcar, esta quarta-feira, uma conferência de imprensa para fazer o balanço das primeiras 10 jornadas da I e II Liga. Não o foi. A se não inédita, mas pelo menos original sessão estava agendada desde antes do arranque desta época. “Concorde-se ou não, foi esta a estratégia que definimos e é esta que iremos continuar”, frisou Luciano Gonçalves, presidente do Conselho de Arbitragem e o primeiro a encarar os microfones, por ser “este o compromisso com jogo”. Ao seu lado, Duarte Gomes, o diretor técnico da arbitragem nacional, anuiria pouco depois.
Antes de se sujeitarem às muitas perguntas dos jornalistas face ao recente despertar do nunca defunto clima de guerrilha entre clubes quanto à atuação dos árbitros, coube ao antigo homem do apito ocupar grande parte da plateia. Dedicou-se a distribuir estatísticas, numerar o trabalho feito, dedicou-se a descrever, com minúcia, como, onde e quando trabalham os 24 árbitros da principal categoria (C1) que “são observados em todos os jogos, via televisão”, detalhando o “processo avaliativo” e o “grupo de mentores que vão aos estádios acompanhar os árbitros e, no final dos jogos, fazem um debriefing formativo, pedagógico, em questões de posicionamento, movimentação, personalidade, comunicação com os colegas, das decisões”.
Ainda mergulharia mais no detalhe, indo fundo à vídeo-arbitragem tão enfocada pela crítica recente dos clubes, em especial dos três grandes. Nos 90 jogos da primeira dezena de jornadas da I Liga houve 40 intervenções. “Dessas, 19 foram sobre penáltis, 16 em relação à legalidade dos golos (fora de jogo, falta atacante, bola fora, etc.) e cinco para cartões vermelhos”, pormenorizou. “Destas 40, 24 foram daquelas factuais em que o árbitro recebe a informação e não vai ao ecrã. As outras 16 implicaram a ida do árbitro ao ecrã e dessas revisões, foram acatadas 13 e, em três situações, os árbitros entenderam que a sua decisão inicial estava correta.”
Duarte Gomes carregou, mais ainda, no retrato numérico deste quase um terço de campeonato já jogado. O tempo útil de jogo “está aquém” do que gostaria, pois à 10.ª jornada “era de 53:09 minutos”, inferior aos “às melhores referências internacionais” e ao cumulativo da temporada passada, em que ficou nos 54:50. Mas, para o contrabalançar, informou que “os árbitros dão agora mais tempo de compensação”: o ano passado, “a média por esta altura” era de 8:50 por jogo, no total, e este ano vai nos 9:53.”
Revelou também que o tempo médio que os árbitros demoraram a rever lances no ecrã posto no relvado foi de 1:35 minutos e de 1:05 nas “decisões factuais”, em que espera, por exemplo, pela confirmação de um fora de jogo. Ambos “em linha com o registado o ano passado”. Na avaliação às decisões tomadas na vídeo-arbitragem, os dados são claros: “Analisámos 1308 clips em relação à I e II Ligas, à Liga BPI e a Taça da Liga e a taxa de acerto foi de 97%, face ao parecer técnico e à avaliação dos observadores.”
O diretor técnico da arbitragem nacional, porém, sabe “obviamente” que “muitas vezes do que se fala é dos outros 3%, da sua consequência, do seu impacto e da sua visibilidade”. O seu enaltecer da humildade da classe, da dedicação à transparência na comunicação, foram como vírgulas na sua intervenção. Reforçou tal compromisso várias vezes. Reconhecendo que “parte da responsabilidade” nas estatísticas apresentadas “é dos árbitros”, Duarte Gomes não se poupou a identificar as nuances que residem no quintal dos outros participantes num jogo de futebol.
Por que erram os árbitros?
A sua disposição para elencar quotas-partes, contrariando a narrativa tão comum de clubes, seus presidentes, treinadores ou jogadores em culpabilizarem a arbitragem por resultados de jogos que lhes sejam desfavoráveis, começou logo na questão do tempo útil de jogo: “Quanto mais faltas, obviamente mais jogo parado; menor proatividade em situações de bola parada em que o árbitro pode e deve ser mais célere, estamos a trabalhar nisso. Mas, também, há mais simulações de lesões, mais queda dos guarda-redes em que não há qualquer lesão visível com aproveitamento para uma espécie de tempo técnico realizado pelas equipas; tempo perdido com lesões e assistência a lesões e isso é literalmente acrescentado ao tempo adicional, incluindo o tempo das revisões no VAR.”
Duarte Gomes, diretor técnico da FPF, falou ao lado de Luciano Gonçalves, presidente do Conselho de Arbitragem.
MIGUEL A. LOPES
Ciente de que “não há trabalhos perfeitos”, reforçou, lá está, “com toda a humildade” que na arbitragem “não há Maradonas”, enquadrando que a classe está “em constante aprendizagem”, ainda mais nesta temporada em que terá mais dois momentos destes - após a 20.ª e a 30.ª jornadas -, divulga os relatórios dos árbitros e as conversas destes com o VAR, e tem, no Canal 11, um programa semanal de análise aos lances dos campeonatos profissionais onde já levaram “cerca de 100” desta época. “Estamos a fazer um processo de transparência que criará sempre ondas de choque naqueles que têm uma opinião contrária à nossa”, abraçou Duarte Gomes, apto a identificar, além das falhas próprias de quem está em campo com um apito, os motivos que contribuem para os erros dos juízes.
Os árbitros erram, passou então a explicar, “porque têm uma desconcentração pontual e perdem o foco no momento exato”, ou “têm o foco no local errado tantas vezes - está nos braços quando a falta é no pisão; o foco está nos pés, a falta é uma cotovelada”. Erram porque “estão muitas vezes mal posicionados para o lance em questão” ou, também, por o lance ser “muito difícil” e entrar na zona na qual quem não é árbitro não admite que exista: “Sei que ninguém gosta da expressão ‘cinzento’, ou ‘de fronteira’, mas elas só são novas para quem não está no mundo da arbitragem, como nós, há dezenas de anos. Há lances de fronteira e há lances cinzentos. Independentemente de terem que ter uma decisão, são lances suscetíveis de criarem dúvidas a quem está a decidir e, muitas vezes, erra por isso.”
Duarte Gomes prosseguiu, decidido a situar o contexto nas muitas condicionantes que existem em cada jogo de futebol. O árbitro também erra “por inexperiência, por incompetência momentânea, simplesmente porque não se lembrou da regra, da recomendação, daquilo que tinha de fazer, ou porque teve um mau instinto e decisão”. Mas também erra, frisou, “porque é ludibriado, é enganado na simulação ou pela mão que agarra na cara quando o toque foi no pé”.
Delineados os vários fatores, o diretor técnico da FPF concluiu que “todo este conjunto leva aos erros”, garantindo, “nos que dependem” dos árbitros, “trabalhar, trabalhar, trabalhar”, além de “treinar mais, treinar melhor”. Fora os aspetos técnicos, há o lado emocional de cada juiz que “toca em aspetos psicológicos e de personalidade” que também influenciam a prestação em campo - “e isto também se trabalha”. Com tempo, paciência e um plano a olhar lá mais para a frente. “As coisas demoram o seu tempo, isto é um processo. E se não o fosse, não haveria erros na fantástica liga inglesa, na alemã, na francesa, na espanhola e na italiana.”
O Conselho de Arbitragem, na garantia de Luciano Gonçalves, “será sempre parte da solução no futebol, nunca parte do problema”. Os árbitros, nas palavras de Duarte Gomes, continuarão em posse da “humildade para perceber que haverá momentos em que erram, em que vão recuar, em que reconhecerão que não fizeram bem com toda a frontalidade”. Às vezes, reconheceu, o “excesso de comunicação como nunca houve” pode “confundir e criar mais neblinas”, mas é uma aprendizagem. “Preferimos sempre isto ao cinzentismo da lei da rolha e do não dizer nada. Já não é a nossa postura e esta não é nossa arbitragem.”
Para diante, os dirigentes não frisaram em concreto a curta malha de quadros disponível na arbitragem nacional, preferindo intuir, pelos números, à carência de árbitros em Portugal. Disseram que existem cerca de 4400 no ativo e que 40% têm três anos ou menos na I Liga, 25% dos que estão no futebol profissional têm dois anos, ou menos, no principal campeonato, e 67% dos nossos VARs têm menos de 50 jogos no desempenho dessa função. “E 30% dos nossos VARs iniciaram este ano a sua carreira nesta função específica”, completou Luciano Gonçalves, não sem antes apontar ao impossível: “Nunca estamos satisfeitos enquanto existir em qualquer campo, estádio e pavilhão um erro de um dos nossos. Procuramos sempre a perfeição mesmo sabendo que isso é utópico, mas é essa exigência que colocamos.”