Tribuna 12:45

Os sacrifícios de João Almeida e a dor que se aceita

João Almeida acrescentou, no sábado, a conquista da Volta ao País Basco às vitória que já tinha na Polónia e no Luxemburgo.
Tim de Waele

Nisto de escrevinhar palavras para serem lidas quer-se a novidade, preferencialmente a invenção, algo original para os olhos, incentiva-se a fuga do rabo dos dedos à seringa da repetição como o amarelado João Almeida fugiu, à pedalada, pelo molhado alcatrão euskarra em direção a Eibar. Lá chegou no sábado, triunfal e de punho cerrado, o branco dos dentes à mostra, com postura alegre no cimo da bicicleta ao celebrar a segunda vitória nas cinco exigentes etapas da Volta ao País Basco, uma corrida complicada por íngremes subidas, nenhuma a elevar-se a um alto quilométrico, porém tendo em todas as tiradas a reincidência montanhosa, com várias contagens.

O português conquistou a prova debaixo do nublado céu do norte espanhol, um cinzento teto a contrastar com mais um radiante feito seu: foi a terceira Volta da sua carreira após vencer a do Luxemburgo e da Polónia (ambas em 2021), brilharetes acrescentados às proezas de acabar no pódio do Giro (2023) ou no 4.º lugar da Vuelta (2022) e do Tour (2024). Saído do selim, já com a txapela basca posta na cabeça a dar-lhe um certo ar de artista, o feliz João Almeida vincou o “significado” da conquista por fazer “tantos sacrifícios” no meio do quão “difícil” é “ser ciclista profissional atualmente”, além do sofrimento implicado no ato de pedalar que me traz à falta de originalidade, porque me tenho de render à repetição.

As agruras mencionadas pelo português caberão em compartimentos para lá do aceite sofrimento que advém de fazer vida do ciclismo, essas dores tomadas por adquiridas por qualquer pessoa que se preste à vida de ter nas pernas a locomoção e nos músculos o combustível. Há três anos e meio, quando João Almeida ganhou no Grão-Ducado, escrevi sobre a sofreguidão movido pela sorte de ter um amigo que foi ciclista em tempos e se predispôs a descrever o que leva um humano a contrariar as dores sobre duas rodas. Perdoem-me por repetir este auxílio, mas ainda não li palavras melhores que tenham descrito o mórbido deleite de quem aceita sofrer assim:

Há um prazer muito específico que é certamente irracional e disfuncional mas viciante e alucinante e que por isso mesmo é um prazer contraditório, porque é um prazer cheio de dor, dor que sabe bem quando a dor devia saber só a dor, achar que a dor tem sabor a mau ou sabor a bom é complexificá-la e romantizá-la em vão porque a dor é uma perda de tempo perante a possibilidade do prazer, o prazer esse sim deve ser aclamado nos seus sabores e escalas diferentes, por exemplo: podemos ter o prazer-medíocre e o prazer-satisfaz e o prazer-bom e o prazer-excelente e porque não o superprazer, eis uma escala possível de prazer, cada um de nós terá a sua escala e nunca é perda de tempo viver e sentir esses escalões do prazer.

Peço perdão por usar “escalões” que é linguagem de IRS mas isto do ciclismo, que é disto que aqui falo embora não o pareça, isto do ciclismo tem a sua contabilidade também, é feito de dois pedais e uma forqueta e ainda um guiador e também uma corrente, é feito ainda de manípulos de velocidades e de múltiplas combinações de andamentos, 52x11 ou 42x23, esta é matemática do ciclista, os ciclistas falam com estes números entre eles e não tente perceber isto porque ninguém entende mesmo os ciclistas, a boca deles sabe-lhes a sangue no final de um contra-relógio de 50 quilómetros sob temperaturas de 40.ºC ou enquanto sobem uma montanha com inclinações de 20% ou por centos maiores, ninguém os entende no sacrifício apocalíptico deles, nem eles porventura se entendem a eles mesmos quando se tentam superar continuamente nesse ato extravagante mas definitivamente poético que é serem os motores de si próprios, as pernas a fazer de gasolina e o coração a bombear óleo da melhor qualidade.

A BMW ou a Tesla têm excelentes veículos mas nenhum é tão corajoso nem sexy como os veículos de calção de licra e camisola justa que atingem 190 ou 195 pulsações por minuto — não porque querem, mas porque precisam, afinal é um prazer irracional e disfuncional mas viciante e alucinante: por mais absurda que seja a dor, e é porque dói tanto, o ciclismo é um exercício contínuo de autossuperação e por isso um exercício contínuo de amor à vida, é rejeitar que há limites ao que podemos fazer e conquistar, no fundo o ciclismo é a prática dessa belíssima ilusão humana que é a crença de que não há limites para o que podemos conquistar, portanto o ciclismo é uma metáfora do progresso e isso é superprazer.

Tadej Pogačar fez o que por estes dias um trepador das Grandes Voltas quase nunca faz: ir sofrer nos empedrados da Paris-Roubaix
Billy Ceusters

A liturgia do sofrer é praticada no ciclismo sem necessidade de pregar. Quem se submete a esta vida rege-se pelo respeito ao que corrói a carne nos corpos e daí, mas não unicamente por aí, se pode entender a recusa de João Almeida em oferendar a vitória na última etapa da Volta ao País Basco ao suplicador Enric Mas. O espanhol sem vitórias em tiradas há 924 dias viu-se com o português na fuga final e perguntou-lhe, enquanto pedalavam, se João lhe regalava a vitória, se literalmente o deixava ganhar, inquérito não inédito no ciclismo embora sacrilégio no desporto: no dia em que o vencedor necessitar da veleidade dos vencidos, os melhores deixarão de ser distintos; passarão a ser uma circunstância, não uma constatação.

João ganhou porque quis ganhar e merecia, tanto o português como quem com ele partilhou dores na sua equipa, explicou o ciclista de A-dos-Francos no desfecho, não dizendo mas aludindo subliminarmente ao respeito pelo sofrimento que forma, no ciclismo, súbditos fiéis à escala que afeta os bem-sucedidos, os meros existentes, os gregários em prol do brilho dos outros ou os que nunca são tidos para vitórias. Todos sofrem, todos se regem pela mesma dor. É essa omnisciência que estende venerações no caminho de Tadej Pogačar, campeoníssimo outlier esloveno, um nato trepador dedicado às delapidações maiores numa bicicleta a quem vivalma apontaria um dedo se não tivesse ousado ir pedalar, no domingo, às labaredas do Inferno do Norte.

Não lhe faltavam provas de ter asas imunes ao fogo, porém lá esteve nos 259 quilómetros da Paris-Roubaix, a estremecer nas 30 secções de martírio empedrado embelezados, na fala, por se chamarem pavé, quando são tudo menos sumptuosos. Pogačar jamais participara, enquanto sénior, no cume do sofrimento em planície por alguma razão: não tem corpo, nem perfil, muito menos características para se fazer à mais árdua das Clássicas da qual os grandes voltistas atuais pedalam bem para longe. Mas o esloveno é diferente. Se é para habitar na grandeza então que seja em grande, a esticar as fronteiras da grandiosidade.

Com os dentes a tilintarem da tremedeira de rolar sobre pedregulhos autênticos, os músculos bambos dos solavancos, a bicicleta a tremer e até o pulso desbotado a vermelho por sangrar pela fricção do relógio na pele, Pogačar estreou-se na infernal corrida onde o sofrimento é omnipresente. Fez um 2.º lugar, traído pela rapidez com que entrou numa curva mal calculada, estatelando-se na lama a 37 quilómetros do destino quando liderava na companhia de Mathieu Van der Poel, ele sim um saltimbanco destas dores, mestre das estradas feitas de pedras que ganhou pelo terceiro ano seguido. “Shit happens”, lamentou o coloquial esloveno no final, após uma chegada sorridente ao velódromo onde termina a prova.

Campeão do mundo e vencedor de um Giro d’Itália e três Tour de France, o atípico ciclista não é chamuscado pela altitude dos voos que apenas ele alcança nesta geração, logo está para se divertir. De novo, se é para sofrer, então que seja espetacularmente. Um típico voltista, Pogačar tem esqueleto de trepador e as aptidões moldadas aos sobrehumanos esforços da montanha. Pelos cânones deveria ser alérgico às longas e árduas corridas de um dia, em especial às tidas como os cinco Monumentos. E foi do mais incomum vê-lo a ganhar a Tour de Flandres (duas vezes), o Giro de Lombardia (quatro edições, a Liège-Bastogne-Liège (um par de vezes) e ainda mais a pedalar nesta Paris-Roubaix, a proeza que lhe falta, além da Milão-Sanremo, para colecionar todas as monumentais corridas.

Visto o que Tadej Pogačar deixou nas tortuosas estradas onde quedas, pneus furados e trocas de bicicletas são mato, os adversários diretos elogiaram-no, como não, pelo voluntarismo em alargar a sua lenda a lugares inusitados. Louvar-lhe o talento, as suas apetências, tornou-se banal. O esloveno chegar à Paris-Roubaix e atacar nos troços empedrados já é outra coisa, não apenas uma fome determinada em trincar o Olimpo - será um abraçar completo do sofrimento. Do irracional e disfuncional que é aceitar a dor e do viciante que deve ser superá-la em cima de uma bicicleta. Já dizia o meu amigo: “porque é um prazer cheio de dor, dor que sabe bem quando a dor devia saber só a dor, achar que a dor tem sabor a mau ou sabor a bom é complexificá-la e romantizá-la em vão porque a dor é uma perda de tempo perante a possibilidade do prazer.”

O que se passou

Zona mista

A receita para concluir o contrato é estacionar muitos autocarros. Veremos se Gyökeres consegue escalá-los dentro de duas semanas.

A afirmação de Stuart Baxter foi jocosa, vinda de boa-disposição de um homem cheio de mundo, calejado por experiências múltiplas e muitos lugares: já trabalhou em 12 clubes de nove países e foi campeão em dois continentes. Aos 71 anos, o Boavista contratou-o para ser o terceiro treinador da época e tentar salvar o clube da despromoção em cinco jornadas. No inusitado já ganhou, porque até se gabou de ter um índice de massa gorda inferior ao de alguns jogadores.

O que vem aí

Segunda-feira, 15

🎾 Arranca o ATP 500 de Barcelona (a partir das 12h, na Sport TV2).
🎾 Começa também o Oeiras Open, prova ATP e WTA 125 que se realiza no Complexo Desportivo do Jamor.
⚽ O Fulham de Marco Silva visita o Bournemouth de Andoni Iraola na Premier League (20h, DAZN 1, oportunidade para ver duas das equipas mais entretêm esta época na Premier League.

Terça-feira, 16

🎾 ATP 500 de Barcelona e de Munique (a partir das 12h, nos canais 2 e 3 da Sport TV).
⚽ Dois jogos da 2.ª mão dos quartos de final da Liga dos Campeões: Borussia Dortmund-Barcelona (20h, DAZN 1) e Aston Villa-PSG (20h, Sport TV5).

Quarta-feira, 17

🎾 ATP 500 de Barcelona e de Munique (a partir das 12h, nos canais 2 e 3 da Sport TV).
⚽ Mais decisões para ver quem segue para as ‘meias’ da Champions: Real Madrid-Arsenal (20h, Sport TV5) e Inter-Bayern de Munique (20h, DAZN 1).

Quinta-feira, 18

🎾 ATP 500 de Barcelona e de Munique (a partir das 12h, nos canais 2 e 3 da Sport TV).
⚽ Para a 2.ª mão dos ‘quartos’ da Liga Europa, o Manchester United de Ruben Amorim e Diogo Dalot recebe o Lyon de Paulo Fonseca (20h, Sport TV5). À mesma hora, o Légia de Varsóvia treinado por Gonçalo Feio joga em Londres, contra o Chelsea (DAZN 1) na Liga Conferência.

Sexta-feira, 19

🎾 ATP 500 de Barcelona e de Munique (a partir das 12h, nos canais 2 e 3 da Sport TV).
⚽ Em dia santo religioso haverá bola no arranca da 29.ª jornada da I Liga: Farense-Boavista (15h30, Sport TV3), Rio Ave-Santa Clara (15h30, Sport TV1), FC Porto-Famalicão (18h, Sport TV2) e Sporting-Moreirense (20h30, Sport TV1).

Sábado, 20

🎾 ATP 500 de Barcelona e de Munique (a partir das 12h, nos canais 2 e 3 da Sport TV).
🎾 Jogam-se as finais masculina e femina do Oeiras Open.
⚽ Mais I Liga: AFS-Casa Pia (15h30, Sport TV2), Nacional-Gil Vicente (15h30, Sport TV1), Arouca-Estrela da Amadora (18h, Sport TV3), Estoril Praia-SC Braga (18h, Sport TV2) e Vitória-Benfica (20h30, Sport TV1).

Domingo, 21

🎾 Finais dos ATP 500 de Barcelona e de Munique (a partir das 12h, nos canais 2 e 3 da Sport TV).
🏎️ Fórmula 1: Grande Prémio da Arábia Saudita (18h, DAZN).
⚽ O AC Milan de Sérgio Conceição, Rafael Leão e João Félix recebe, na Série A, a Atalanta de Gian Piero Gasperini (19h45, Sport TV1).

Hoje deu-nos para isto

O Benfica de Filipa Patão conquistou o quinto título seguido, feito inédito no futebol português.
FERNANDO VELUDO

A modéstia que visita ocasiões vitoriosas é daquelas factualidades da vida tidas como expectáveis, uma questão de elegância, cujas razões de se preconizar que ficam bem são capazes de ser explicadas por ninguém quando a visada pessoa está empossada de plenos direitos para se regozijar, nem que seja um bocadinho. Filipa Patão sugerir que é “talvez a pessoa menos responsável” por o Benfica ser pentacampeão nacional feminino fica-lhe bem, é veste bonita, mas despida está de verdade por mais que a treinadora seja esquiva às atenções ou desgoste deste lado mais plástico do futebol, o das falas e dizeres, onde como em todas as profissões se prega que temos de nos saber vender.

Jamais um treinador ou treinadora conseguira, no futebol de Portugal, conquistar cinco títulos seguidos. Os motivos para tal são muitos: lidar a diário com formas e feitios de 20 e tal futebolistas durante quase 10 meses, sintonizar vontades, atinar qualidades numa forma coletiva de jogar para ganhar partidas enquanto o outro meio-mundo tenta fazer o mesmo é tramado, corrói o ânimo e desgasta o juízo. A dificuldade comprova-se pela raridade: nos homens, Jesualdo Ferreira foi o primeiro a vencer três consecutivos, com o FC Porto, único clube a ligar cinco títulos em série entre 1994 e 1999. Precisou de três treinadores para a feitura, com Bobby Robson a começar, António Oliveira a dar seguimento e Fernando Santos a colocar o laçarote no embrulho.

Nas mulheres, o longevo 1.º de Dezembro replicou o feito, por duas vezes, ao longo dos 11 títulos encadeados na primeira década e meia deste século. Eram outros tempos em que a bola chutada por mulheres via o estado atual das coisas como uma miragem inalcançável. Não há mesmo modéstia que poupe Filipa Patão, de 36 anos, à exultação do quão raríssima é. Nem as circunstâncias de o Benfica ser o clube, no país, mais canalizador de dinheiro, condições e matéria-prima para o seu projeto feminino a atenua: nas cinco edições da Liga BPI que conquistou, a equipa perdeu apenas cinco jogos com Filipa Patão, ganhando 89, empatando outros cinco. E ainda pode acabar esta época sem derrotas no campeonato.

A mulher do olhar sério esteve na gala mais recente da Bola de Ouro, nomeada para melhor treinadora do mundo, por si só um feito por vir do país ainda verdejante na primavera do seu futebol, onde nem metade das equipas do seu principal campeonato são profissionais. O Portugal que tem um potente Benfica, capaz de contratar internacionais estrangeiras, ainda há um ano a jogar contra o Lyon nos quartos de final da Champions, acolhe também, e ainda, uma equipa com jogadoras a queixarem-se de salários em atraso, sem dinheiro para pagarem contas da água ou da eletricidade, que ainda em fevereiro protestaram, imóveis, no minuto inicial de um jogo da Liga BPI.

O cenário, entretanto, não amainou. No mesmo arrabalde que alberga o glutão Benfica, embalado por “um grande grupo de jogadores, uma equipa de trabalho muito competente” e, acrescentou Filipa Patão, “todas as condições para podermos fazer história”, existe o decadente Vilaverdense, abandonado por um investidor na pré-época, deixado à mercê de outros que terão vindo, com quatro golos marcados e 104 sofridos em 20 jornadas preenchidas por derrotas. A altura do teto dos mais fortes depende da fortaleza dos menos privilegiados. Sem uma liga que cuide de não ter tragédias como a de Vila Verde, feitos como um pentacampeonato como o do Benfica poderão, um dia, ser explicados mais pelo negro da pintura do quadro geral do que pela valia própria.

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