“Um País com ambição”: a análise crítica ao Desporto que está no Programa do novo Governo
AFDLP
Constantino Pereira Martins e Luísa Ávila da Costa, líderes da recente Associação de Filosofia do Desporto de Língua Portuguesa que se propõe a pensar o Desporto que “em meio século de democracia, nunca foi pensado a sério, ou seja, estruturalmente e a longo prazo”, analisam as ideias do executivo de Luís Montenegro para o setor. Após lerem o Programa de Governo, destacam “um problema da tradição democrática portuguesa de apresentação de programas de intenções, mais ou menos generalistas, que é muito diferente de processos, de um pragmatismo que se exige, ou seja, falta, para além de se descrever o que se idealiza fazer, explicar o como se faz”
Constantino Pereira Martins e Luísa Ávila da Costa
1) Contexto geral. Em primeiro lugar, perante um novo plano governativo devemos sempre olhar com esperança de que aproveite a oportunidade que lhe é confiada pelos cidadãos para colaborar na construção do bem-comum. Referir igualmente que pensar o desporto em Portugal, do ponto de vista executivo ou outro, implica compreender uma realidade vasta, complexa e não-isolada.
Assim, é para todos nós visível e claro que o desporto aparece num contexto histórico e social específico do país, de degradação das instituições, de polarização do diálogo no espaço público, de descrença nos atores políticos e de uma certa decadência generalizada do ponto de vista político, moral e de solidariedade geracional. Por isso mesmo, nesta conjuntura, é difícil captar a atenção e os esforços governativos a par de problemas tão vitais e gangrenados como os da educação, da justiça, da habitação, da segurança, ou da saúde.
Temos que humildemente reconhecer que o desporto aparenta ser uma das coisas mais importantes, ainda que no seio das menos importantes. Mas encerra em si uma potência que vai muito para lá da ilusão desta aparente menoridade. E é essa potência que importa pensar e realizar. Mas também é essa mesma potência que merece e deve ser considerada com seriedade.
Infelizmente, o desporto até hoje, como outras áreas importantes da vida do nosso país, tem um espaço reservado, sem uma ordem de leitura clara, dentro de uma reserva multilateral pós-freudiana: de lazer, escape, negócios, etc. Em meio século de democracia que se celebra este mês, o desporto nunca foi pensado a sério, ou seja, estruturalmente e a longo prazo. Talvez com receio do que aconteceu à experiência dos regimes totalitários na sua relação ao fenómeno desportivo, a democracia portuguesa prefere ficar pelas grandes festas e eventos, e/ou ficar bem na fotografia, leia-se nas vitórias, para fins partidários e exibicionismo político-mediático. As ruínas das derrotas, por seu lado, em vez de se tornarem material de reflexão e aprendizagem, tornam-se também elas reféns de lógicas pós-freudianas de recalque e negação.
Suprime-se no inconsciente colectivo, para que não se estrague a festa. Os cidadãos de um país existem, e continuarão a existir para lá da festa desportiva. A ambição tão bem desenhada no programa de governo como um querer mais entre a identidade e multiplicidade, o progresso e o futuro, a solidariedade e a competitividade, o conhecimento e a cooperação, não podem depois descer à terra e ver que os supremos interesses do país se concretizam, encarnam e realizam sempre aquém, ou para alguém, ou refém. Um Estado não pode estar refém. E especialmente depois de 50 anos de aprendizagem democrática.
Um Estado só existe se tiver uma visão estratégica para o país. Mas uma visão integrada e sistémica requer a consideração realista das condições concretas do país que existe, i.e., para além dos problemas estruturais como a corrupção, a pobreza, etc., temos que ter sempre em conta os problemas invariantes, dir-se-ia do ponto de vista kantiano enquanto condições de possibilidade, para que se possa pensar e agir politicamente com seriedade e credibilidade. Ou seja, é impossível implementar uma política pública desportiva sem a consideração concreta das assimetrias mais óbvias que o país, em 2024, exibe (norte-sul, interior-litoral, e a especificidade autonómica das ilhas), a par de outras assimetrias profundas relativas à demografia, à riqueza, à desigualdade, e ao classismo instalado.
Estes factores devem ser equacionados e somados relativamente à omissão mais flagrante da proposta de programa governamental, no que toca aos pressupostos conceptuais e globais da ambição, pela ausência de uma escala macro, de uma perspetiva integrada no contexto europeu e global. É entre o local, o regional, o nacional e o internacional que a nossa estratégia se pode tecer para vencer, empatar ou perder, ou pelo menos, para ir a jogo de uma forma consistente.
Tal como o próprio Primeiro-Ministro, apaixonado pelo desporto desde a juventude, referiu em entrevista: “O jogo precisa de gente, a gente precisa do jogo e se esta dinâmica entra em desuso, a indústria pode colapsar e o prazer dirigir-se para outras paragens.” Isso resulta de um problema da tradição democrática portuguesa de apresentação de programas de intenções, mais ou menos generalistas, que é muito diferente de processos, de um pragmatismo que se exige, ou seja, falta, para além de se descrever o que se idealiza fazer, explicar o como se faz.
Se do ponto de vista da gestão do Estado são precisas direções de navegação, os desafios contemporâneos também exigem clareza face aos objectivos e processos, ou seja, pela explicação e demonstração de como se pode lá chegar. A mistura do desporto e actividade física mostra isso: o confronto radical entre o mundo dos desejos, de ter um país mais activo e cidadãos mais desportistas, e o mundo real de um país onde se matam ciclistas nas estradas ou caminhantes nas passadeiras, onde os ritmos profissionais reduzem a mínimos o tempo de ócio, com a família e de lazer (assim como o tempo em que as crianças e os jovens permanecem nas escolas em detrimento do seu tempo livre), ou de lares de idosos onde a actividade física maior é ir da cama para o sofá ver televisão e esperar pelo almoço.
Esta realidade dos nossos mais velhos torna-se particularmente gritante e paradoxal quando pensamos na quantidade de profissionais de desporto e educação física que estão no desemprego, não têm lugar no ensino, ou se encontram em situações profissionais de acentuada precariedade dentro de qualquer ginásio ou clube desportivo a recibos verdes (quando não a trabalhar pro bono). Todos concordamos que seria óptimo ter um país com maiores índices de prática física e desportiva, tal como todos concordamos que é impossível sermos um país europeu digno com milhões de pessoas pobres.
Em termos concretos, importa, para lá do desejo e da aspiração, encontrar vias da sua operacionalização, de construção de pontes e diálogo entre a procura e a oferta de soluções, ao invés de nos arrastarmos indefinidamente na síndrome, em ciclo vicioso, de identificação dos problemas. Inaugurar um ciclo virtuoso é a esperança que nos resta, num diálogo entre os hospitais, centros de saúde, misericórdias, lares, etc., e as faculdades e as escolas superiores de desporto, assim como as autarquias e as estruturas governamentais do desporto.
2) Contexto desportivo. O programa de governo acerta no panorama global relativamente ao mundo e fenómeno desportivo em Portugal: confuso e difuso. É absolutamente essencial ter uma visão estratégica e integrada do desporto, alicerçado na coerência dentro do contexto nacional, europeu e global. Para lá dos inúmeros casos de estudo que poderíamos debater, existem dois que pela sua relevância merecem uma atenção especial no que oferecem como oportunidades de pensamento e desenvolvimento: a) caso do surf, verdadeira indústria em Portugal que pelos seus multiníveis se posiciona como um dos potenciais maiores players mundiais; e b) caso do futebol no Médio Oriente, que pela influência portuguesa, e também brasileira, poderia ser pensada e executada de múltiplas formas desde o plano diplomático, económico, cultural e científico, etc., ultrapassando o soft hate speech em direção a um soft power positivo da posição portuguesa no mundo desportivo (que, aliás possui hoje como nunca uma série de posições privilegiadas tanto a nível de personalidades como de possibilidades).
Se o programa do governo apresenta a conjunção desporto e atividade física, já não versa sobre o binómio desporto amador e profissional onde parece residir grande fonte de tensão, como se o desporto em Portugal dependesse de um jogo de futebol ao fim de semana ou de uma medalha olímpica de quatro em quatro anos. Mas a afirmação de uma necessidade de análise por escala, referente ao problema da organização, sistematização e racionalidade, mostra que este programa vê bem a luz ao fundo do túnel. O desporto precisa urgentemente de uma visão integrada, sistematizada onde não fique refém de cada federação, de cada pequena organização, de cada ego. O desporto precisa, assim, de sair de um regime feudal para uma democracia aberta, livre e descomplexada. Isto é, converter-se num verdadeiro desporto para todos.
Se se quiser ter uma ideia concreta do panorama vigente, é imaginar um país sem Ministério da Educação e ficar de frente a observar um amontoado de escolas primárias e secundárias, professores, pais e alunos, centros de explicação, laboratórios, faculdades, centros de investigação, politécnicos, centros de formação, etc., numa enorme manta de retalhos sem rumo, sem norte, sem leme. Neste sentido, a proposta do programa em criar um Observatório do Desporto parece ser uma excelente contribuição para um início de caminhada, se se tiver como fim a ideia de um bem comum. Cruzar o saber e o poder é sempre uma tarefa dura, mas possível, se tivermos como missão o pressuposto ético de Hans Jonas, de uma responsabilidade com os mais novos e os vindouros, um imperativo do cuidado, de deixar as coisas o melhor possível para quem vier a seguir. Porque numa caminhada o primeiro passo na realidade não existe: alguém já caminhou antes de nós, e alguém caminhará depois.
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Nessa caminhada, de todos e com todos, o papel das mulheres, tantas vezes menorizado e menosprezado ao longo da história do desporto, tem neste programa de governo um papel de destaque, ainda por mais com o sublinhado da necessidade de uma presença maior ao nível da gestão e da condução dos destinos das organizações, e também do progressivo desenvolvimento do desporto feminino. O novo paradigma de inclusão e responsabilidade social para com a pessoa com deficiência também está plasmado no programa, bem como os desafios contemporâneos face às novas tecnologias e inovação, numa era de incontornável afinidade das nossas crianças e jovens com os jogos eletrónicos, Esports, práticas desportivas virtuais e utilização de wearables para a monitorização da atividade física e desportiva.
Contudo, no que diz respeito às relações entre desporto, natureza e ecologia, o programa apresenta-se algo omisso, aspeto particularmente preocupante num país como Portugal, com a ligação que tem ao mar e aos rios, e nas múltiplas oportunidades e potencialidades desportivas e económicas que a sua tradição histórica, o presente e o futuro nos apresentam.
Na impossibilidade de cobrir todas as propostas do programa de governo, gostaríamos de sublinhar a atenção dada à questão da obesidade (adulta e infantil), verdadeira epidemia do nosso tempo, conferindo destaque no que concerne à relação entre desporto e saúde. Por outro lado, a escassa preponderância e importância dada à educação física escolar (que possui uma limitada carga letiva, ainda que percorra todos os anos da escolaridade obrigatória) constitui uma permanente resistência à criação de uma cultura de prática desportiva regular e generalizada. Sem uma presença significativa da educação física escolar, a literacia desportiva e o gosto pelo desporto serão sempre um horizonte distante e difícil de alcançar o que, entre muitas outras consequências, sobrecarrega o sistema nacional de saúde com todas as patologias associadas à insuficiente prática desportiva e física em todas as idades.
Além disto, no contexto do ensino-aprendizagem, dentro e fora do contexto escolar (sendo que fora acrescem os custos extracurriculares suportados pelas famílias), o desporto enfrenta vários desafios.
Veja-se, por exemplo, o caso dos atletas em formação. Da mesma forma que já se verificam em Portugal avanços significativos na conciliação do desenvolvimento do talento artístico e musical através do ensino articulado, também um modelo análogo poderia ser pensado para o desporto. Com isto reduzir-se-ia a recorrente percentagem de atletas que se confrontam com o dilema de ter que considerar o abandono da sua carreira desportiva para assegurar a sua progressão escolar e, por outro lado, quando termina a sua carreira desportiva terem que enfrentar um gap académico difícil de superar. Um trabalho de articulação entre as organizações de formação desportiva e o Ministério da Educação revela-se indispensável para uma abordagem desta natureza.
Como nota final, é de valorizar a referência à necessidade de um posicionamento estratégico e sistemático relativamente ao compromisso com a Integridade no Desporto, o que tradicionalmente se identifica por Ética do e no desporto. A Ética não pode, contudo, estar enclausurada em pequenas ações de formação, numa lógica de fast food sem qualquer envolvimento substancial e concreto, porque a Ética radica num esforço entre a sua raiz filosófica e a sua contextualização prática no dia a dia do mundo e cultura desportiva. Um processo em andamento, em crescimento e construção, que não pode ficar apenas rotulado como uma coisa do mundo das ideias, dos discursos bonitos e de cerimónia. Se alguém tem dúvidas sobre a efetividade de políticas desportivas públicas, fundadas na ética e no rule of law, basta ver o caso da evolução da Premier League em Inglaterra, quer por relação à tolerância zero face aos comportamentos de adeptos, bem como às ações dos treinadores e árbitros.
Pedro Dias, em 2021, com o troféu do Mundial de futsal conquistado pela seleção portuguesa.
3) Contexto final: presente e futuro. Talvez aliar a palavra ambição e esperança seja a melhor proposta deste programa de governo. Isto porque existe uma dinâmica de visibilidade e invisibilidade lá inscrita. Esse movimento, tão precioso no fenómeno desportivo, entre o micro e o macro como Pascal tão bem viu sobre a vida, só pode ter uma interpretação benigna se não for o prenúncio para mais uma desilusão e frustração. O programa caminha nesses dois ritmos: 1) um visível, diríamos enquanto passo em frente, a criação de uma Secretaria de Estado; e 2) um invisível, enquanto promessa e esperança de um futuro melhor, um passo seguinte: o Ministério do Desporto.
Passar do atual cenário desagregado e desgarrado a uma política consolidada e a uma visão estratégica para o país, em termos internos e externos, só será possível com ferramentas de políticas públicas de intervenção ministerial.
A passagem para uma Secretaria de Estado do Desporto e a afirmação da sua autonomia só pode ser um bom sinal no caminho para o grito da independência que só um Ministério do Desporto poderá um dia realizar plenamente.